Institucional

Artigo: Andar com fé?

segunda-feira, 26 de fevereiro | 2024

Monumento à Mãe Oxum, na zona sul de Porto Alegre, foi vandalizada e janeiro, episódio que está sendo investigado. / Foto: Ronaldo Bernardi – Agencia RBS

Por Jayme Weingartner Neto
Desembargador, mestre em Ciências Criminais e doutor em Direito

Por Guilherme Schoeninger
Mestrando em Direito na PUCRS

Durante a constituinte de 1988, dentre os incontáveis debates, houve um, aparentemente simples, que recebeu especial destaque. Tendo como horizonte a afirmação da liberdade religiosa como direito fundamental, a decisão sobre mencionar ou não “Deus” no preâmbulo da Constituição tornou-se objeto de acaloradas discussões, inclusive entre os que a defendiam. Estava em causa até a forma com que a referência à divindade superior seria redigida: invocando as bênçãos de Deus, com o pensamento voltado para Deus, confiando o destino da nação a Deus… Houve, inclusive, controvérsia a respeito da grafia do Onipotente: se Deus ou DEUS.

Seja como for, como cuidado nunca é demais e independente do credo, é indiscutível o acerto da constituinte acerca da necessidade da proteção divina sobre o país, tantas nossas vicissitudes (até de golpe escapamos!). Quase 40 anos depois, folheie-se o jornal, acompanhe-se o noticiário da TV ou atualize-se o feed de notícias do celular. Independentemente do meio, a religião é uma das principais matérias de discussão da atualidade. Desde análises sobre a força política da bancada da Bíblia no Congresso até comentários sobre campanhas pela defesa da diversidade de culto estampadas em uniformes de esportistas. Os acontecimentos reportados são variados e abrangem casos graves. Conforme dados da Secretaria da Segurança Pública do RS, os registros policiais por preconceito religioso, em 2023, cresceram 250% em relação à 2022.

Ainda no contexto do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, celebrado em 21 de janeiro, a Polícia Civil passou a investigar pichações empreendidas contra a estátua de Mãe Oxum, na zona sul de Porto Alegre, formando a frase “monumento pagão”. Situações como essa (frequentes contra os povos de terreiro) não se restringem a uma ou outra religião. No cenário nacional, relembre-se o episódio ocorrido em 2023 no Mosteiro de São Bento, em Fortaleza (CE), alvo de depredação com ossos de animais, reproduções da suástica nazista e ameaças de “morte aos cristãos”, além das violações de sinagogas na onda antissemita. Afastando-nos de qualquer juízo de valor sobre esta ou aquela confissão, tais fatos precisam ser examinados com o emprego de um único peso e medida: a força do Direito.

Diante da relevância do fenômeno religioso para as pessoas e para a sociedade (uma indagação íntima e existencial e um fator geopolítico), a Constituição de 1988 consagrou um amplo direito fundamental à liberdade religiosa e na premissa da laicidade estatal, de modo que o poder público está comprometido tanto a não assumir fins religiosos quanto a manter a separação entre as esferas da política e da religião, sem deixar de reconhecer a autonomia de cada uma delas e de prever casos de cooperação, solidariedade e tolerância entre elas.

O Estado laico não anula o direito que as organizações religiosas e seus fiéis têm de divulgar suas crenças e manifestar sua fé. O programa constitucional quer equilíbrio: nada de discriminação, fontes de conflitos e ameaças à paz; ao mesmo tempo, protege a liberdade de expressão religiosa (núcleo desse direito é falar sobre religião e inclusive haver disputa por adeptos). Como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a liberdade de expressão inclui o proselitismo, mas limita-se pelo discurso de ódio. Assim, a fala religiosa (mesmo do púlpito) que rebaixa ou desmerece crença alheia e prega, com risco aferível pelo contexto, tratamento inferior ou hostil para outras crenças ou ateus e agnósticos, extrapola o direito fundamental, caracterizando, ao ameaçar o exercício da liberdade religiosa de minorias e vulneráveis, crime previsto na Lei 7.716/1989 (racismo religioso).

Já o monumento dedicado à Bíblia que se cogita erguer na orla de Tramandaí, no litoral gaúcho, prevê uma estrutura imponente, com a citação de dois salmos. Na justificativa, o Poder Executivo destacou o objetivo de “alavancar o turismo evangélico e demonstrar o grande respeito e apreço da administração pela comunidade evangélica”. Longe do ineditismo, a edificação de marcos em prol do fenômeno religioso supera o tempo e o espaço. Ainda na realidade do Estado, veja-se a estátua do Cristo Protetor, em Encantado (aliás, em Pilar, Alagoas, parece que está sendo construído um Cristo ainda maior, que desbancará o monumento gaúcho). Mas, se em Encantado consta que o monumento saiu do chão inteiramente baseado em doações particulares da comunidade, a obra praiana dedicada ao livro sagrado (a se confirmar) segue sem esclarecimentos sobre custos e uso ou não de recursos públicos.

Laico o Estado, reconhece o fenômeno religioso também no espaço público. Considerando a importância da religião e sua salvaguarda como indispensável à dignidade humana, bem como a história e a cultura, a Constituição não determina a retirada da estátua do Cristo Redentor do Corcovado, a extinção do feriado de Nossa Senhora Aparecida (ou o municipal de Nossa Senhora dos Navegantes/Iemanjá) ou a alteração do nome dos Estados de São Paulo e de Santa Catarina. O modelo adotado no país não se confunde com outros: nem identificação entre Estado e Igreja, tampouco oposição. Podemos harmonizar o fato da maioria com a proteção das minorias.

O Estado brasileiro é laico, não laicista, e não tem licença para subvencionar uma religião específica. A destinação de verbas públicas para alianças entre o Estado e as organizações religiosas demanda necessariamente a persecução do interesse público, verificado, sobretudo, em ações dos setores educacional, assistencial e hospitalar, pena de se desvirtuar a laicidade para favorecimento clientelista de algumas confissões. Se a relevância da fé é incontestável na sociedade brasileira, a impessoalidade no trato do orçamento público também precisa se firmar.

Da liberdade religiosa, vista como um feixe de direitos e deveres, decorre a garantia institucional da diversidade e do pluralismo religioso – o oposto do fundamentalismo. Natural que babalorixás, padres, pastores, rabinos, mulás e demais líderes discordem entre si em seus dogmas (também os fiéis). Isso é garantido constitucionalmente. Mas, se a discordância vira intolerância e beligerância ou a abertura ao espaço público oculta favorecimento, o fio vermelho foi ultrapassado.

Quando o STF julgou a omissão de Deus no preâmbulo da Constituição do Acre (não é inconstitucional), o ministro Sepúlveda Pertence ressaltou que a referência ao Altíssimo não teria “a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada”. Mesmo que não haja um dever jurídico de proteção de Deus sobre o país, seguimos carecendo de empatia e, por que não, dependendo de um pequeno milagre a cada dia para aprender a conviver, o que passa, cada vez mais, por respeitar o direito à liberdade religiosa. Andar com fé, enfim, não se choca com a Constituição, que garante uma caminhada digna e plena.

*Artigo publicado originalmente em GZH. 

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