Manifestação contra violência pede paz na praia de Icaraí, em Niterói (RJ)

EntrevistaFOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Os efeitos da violência

Consequências nocivas dessa exposição cada vez mais constante afetam a saúde pública e a individual

POR VANESSA MELLO

A violência é um fator muito presente na vida dos brasileiros. O Atlas da Violência 2017, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra números alarmantes. Em 2015, ocorreram 59.080 homicídios, uma taxa de 28,9 por 100 mil habitantes. Em apenas três semanas, mais pessoas são assassinadas no País que o total de mortos nos ataques terroristas no mundo nos cinco primeiros meses de 2017. Ao olhar as estatísticas da faixa etária entre 15 e 29 anos, 318 mil jovens foram assassinados de 2005 a 2015.

As consequências dessa constante exposição resultam em prejuízos sociais e individuais, desde atraso no crescimento econômico das regiões e impactos na saúde pública a efeitos deletérios físicos e mentais, para as vítimas. Segundo o professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Escola de Humanidades, Christian Kristensen, quem passa por situações traumáticas corre o risco de desenvolver uma série de reações que, com o tempo, podem se configurar em transtornos mentais. Dentre os mais comuns, há quatro: Transtorno de Estresse Agudo, Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e os quadros associados de ansiedade e transtorno de humor.

A manifestação de TEPT é uma das decorrentes da violência, com alto custo em termos de saúde pública. “As pessoas passam anos sofrendo, sem necessariamente receber o diagnóstico correto. Estudos mostram que levam, em média, 11 anos entre a ocorrência do evento estressor e a busca por tratamento efetivo”, destaca Kristensen.

A VISÃO DE ULRICH SCHNYDER

Para debater os efeitos da exposição à violência e propor intervenções, preventivas e terapêuticas, a PUCRS realizou o Congresso Internacional Violência Urbana e Trauma em Países em Desenvolvimento, em parceria com a International Society for Traumatic Stress Studies (ISTSS). O evento reuniu especialistas de diversos países, entre os quais o psiquiatra e professor da Universidade de Zurique, Ulrich Schnyder.

Schnyder foi presidente da ISTSS e da European Society for Traumatic Stress Studies. Amplamente premiado, em 2016 recebeu o Lifetime Achievement Award da ISTSS. Com mais de 150 artigos publicados, 30 capítulos e nove livros, o também coordenador do Departamento de Psiquiatria e Psicoterapia, da Universidade Hospital Zurique, falou à Revista PUCRS sobre intervenções terapêuticas mais eficazes, perspectivas futuras para tratamentos, memória do trauma e psicoterapia e farmacoterapia combinadas.

 

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Quais as intervenções terapêuticas mais eficazes para transtornos relacionados a trauma?

De acordo com praticamente todas as diretrizes em nível mundial, a terapia cognitivo-comportamental focada no trauma (TCC-FT) constitui o tratamento mais eficaz para o TEPT. Entre as abordagens, Terapia de Exposição Prolongada, Terapia de Processamento Cognitivo, Terapia Cognitiva para TEPT e Terapia de Dessensibilização de Movimento Ocular e Reprocessamento desfrutam de suporte empírico mais forte. Terapia de Exposição Narrativa e Psicoterapia Eclética Breve, bem como a Terapia Narrativa STAIR também são eficazes. Em relação à medicação, os inibidores seletivos de recaptação da serotonina são efetivos. No entanto, são muito inferiores à terapia cognitivo-comportamental focada no trauma.

Trauma tem cura?

Não é uma doença. É um evento adverso que ocorreu no passado de uma pessoa. Às vezes, a experiência traumática leva ao desenvolvimento de um distúrbio psicológico relacionado ao trauma, como o TEPT. Embora saibamos que o TEPT é uma condição duradoura e muitas vezes se desenvolve de maneira crônica, tratamento e cura podem ocorrer em alguns casos. Em outros, particularmente naqueles que sofreram exposição sequencial a múltiplos tipos de trauma, psicoterapia e medicação contribuem de forma tímida para reduzir os sintomas psicológicos e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

Nas terapias cognitivo-comportamentais, quais os elementos comuns nas abordagens para o TEPT?

Os elementos comuns incluem psicoeducação; ensino de regulação emocional e habilidades de enfrentamento; exposição imaginária às lembranças traumáticas; modificação de cognições (processamento cognitivo e reestruturação); foco em emoções como medo, vergonha, culpa, raiva, tristeza, luto e/ou lesão moral; e a reorganização dos processos de memória a fim de criar uma narrativa de trauma consistente.

“Trauma não é uma doença. É um evento adverso que ocorreu no passado de uma pessoa. Às vezes, a experiência traumática leva ao desenvolvimento de um distúrbio psicológico relacionado ao trauma, como o TEPT. Embora saibamos que o TEPT é uma condição duradoura e muitas vezes se desenvolve de maneira crônica, tratamento e cura podem ocorrer em alguns casos.”

Quais as perspectivas de tratamentos futuros para os quadros de transtornos relacionados à trauma?

Os distúrbios relacionados ao trauma frequentemente ocorrem associados a outras comorbidades, como depressão, uso de substâncias, distúrbios somatoformes e transtornos de personalidade, entre outros. Portanto, a combinação de TCC-FT com protocolos de tratamento para as comorbidades precisa ser estudada cuidadosamente. O desenvolvimento das chamadas “microintervenções” para abordar problemas específicos de transdiagnóstico, observados em pessoas traumatizadas, é outra maneira de melhorar nossas opções terapêuticas. Por exemplo, estamos desenvolvendo uma microintervenção para melhorar a autoeficácia dos refugiados gravemente traumatizados. Também precisamos entender melhor os mecanismos de ação que estão subjacentes às abordagens de tratamento atualmente disponíveis. Além de se concentrar nos problemas dos pacientes, incluindo suas memórias traumáticas, devem ser desenvolvidas e estudadas intervenções destinadas a aumentar a resiliência dos pacientes ao estresse.

Qual a importância de trabalhar com a memória de um evento traumático na psicoterapia?

Entre a comunidade científica de pesquisadores de estresse pós-traumático, assim como de clínicos, há um consenso de que abordar memórias traumáticas é essencial para ajudar o paciente a ter controle sobre os sintomas intrusivos de revivência da experiência, como flashbacks e pesadelos. No entanto, não significa que a melhora ou até a cura não possam ser alcançadas por outros meios. Eu, pessoalmente, acho que o desenvolvimento de uma maior resiliência pode ter o mesmo efeito, ao menos em certos pacientes. Alguns acham difícil passar por terapia de exposição. Para eles, pode ser uma boa ideia ter alternativas efetivas à disposição.

Quais as perspectivas atuais e futuras para tratamentos combinados entre drogas?

Várias dessas drogas foram testadas nos últimos 20 anos: cortisol, beta bloqueadores, d-cicloserina, oxitocina e outros. Parece haver um certo valor na combinação de compostos psicoativos com psicoterapia. Um dos problemas com o estudo dessas drogas é que a indústria farmacêutica não está interessada nessas abordagens, já que a maioria dos medicamentos em questão são compostos “antigos” e baratos. A indústria está muito mais interessada em novos medicamentos que prometem grandes benefícios financeiros.