Pesquisa

O impacto das migrações ontem e hoje

Projeto analisa questões históricas e fenômenos como transculturalismo e traumas

Por Ana Paula Acauan

ANGIOLO TOMMASI – TELA GLI EMIGRANTI, 1895

Migrações: perspectivas histórico-conceituais e análise de fenômenos contemporâneos é um dos projetos que integra o PUCRS PrInt, proposta da PUCRS contemplada em edital do Programa Institucional de Internacionalização (PrInt), da Capes. Reúne pesquisadores de História, Filosofia, Educação, Teologia e Psicologia para, além de um passeio pelas questões históricas do fenômeno da mobilidade humana, apontar aspectos transculturais, de identidade e saúde mental resultantes da situação de migrante ou refugiado que se assemelham em diferentes períodos. Em quatro anos, a iniciativa pretende fomentar uma rede de acadêmicos europeus e americanos dedicados a esses estudos.

“O mundo já era global no século 19”, adverte o professor da Escola de Humanidades Antonio de Ruggiero, coordenador do projeto, e prossegue: “As migrações são um local de observação privilegiado para perceber as mudanças da sociedade contemporânea, do funcionamento das redes sociais às atribuições do direito de cidadania, da integração dos jovens ao nascimento de um novo empreendedorismo”.

Família italiana em Ana Rech, na serra gaúcha, em 1904

FOTO: ACERVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL JOÃO SPADARI ADAMI

HIBRIDISMO CULTURAL

As migrações do passado geraram processos de hibridismo cultural em vários campos, como religião, gastronomia, arte, música, pensamento político, língua, literatura e jornalismo. De Ruggiero lembra que os primeiros viajantes burgueses do século 19 exaltavam a presença multirracial no Rio Grande do Sul e a convivência entre diferentes povos. A diferença de hoje, segundo o professor, é que havia uma política de governo voltada à colonização. “A população do Estado era de 100 mil em 1824. Os alemães e italianos reclamavam na época, mas havia um projeto para dar acolhida a eles. Foi feita a primeira reforma agrária, criando uma classe média e pequena proprietária.”

Os imigrantes se mantinham vinculados à terra natal. Até mesmo padres vinham da Itália. Para preservar sua identidade, criaram jornais, defendendo a pátria mais do que os conterrâneos. Os pesquisadores enfrentam dificuldades de encontrar esses materiais no Brasil. Há poucos exemplares de La Patria Italo-Brasiliana no Museu Hipólito José da Costa. Almanaques anuais da publicação podem ser localizados no acervo de Benno Mentz, guardado no Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS. De Ruggiero diz que é mais fácil achar essas coleções na Itália. Conseguiu uma quase completa de Stella d’Italia. Atribui esse fato à falta de preservação cultural do Brasil e ao contexto político da época. “Em 1942, quando o presidente Getúlio Vargas se aliou aos Estados Unidos, não se podia mais falar italiano e esses jornais acabaram se perdendo.”

Serão pesquisadas as primeiras formas de instrução dos filhos dos migrantes, as práticas didáticas e modelos utilizados para reforçar a identidade étnica (currículo, livros escolares e memórias públicas).

DEBATES NORMATIVO-JURÍDICOS

“Como grupos de imigrantes devem reagir diante da necessidade de integração, sem que a sua identidade tenha de ser posta em questão? Quais os limites dessa unidade, se é que há limites? De que modo formas de integração acabam criando minorias ou grupos diferenciados, correndo o risco de cair em segregações?” Essas questões instigantes são feitas pelo professor Roberto Hofmeister Pich, da Escola de Humanidades, responsável por pesquisa que trata dos aspectos normativo-jurídicos do projeto Migrações.

Segundo o docente, é preciso pensar que a reflexão sobre o assunto, e a própria formação do Brasil atual, “exige assumir ou pelo menos fazer ajustes com responsabilidades históricas, diante de tanta injustiça cometida”. Refere-se aos “processos violentos de migração ‘interna’, no caso da perda de espaço dos grupos aborígenes, e ‘externa’, pelo absurdo e longo processo de escravização e transporte forçado de negros africanos”.

Já na primeira metade do século 16, a Filosofia começa a se interessar pelo tema, devido às “descobertas” ultramarinas. “A partir das escolas de pensamento ibéricas do século 16 – tanto católicas quanto escolásticas em sua cultura filosófica, jurídica e teológica –, as formas de migração começam a ser pensadas em termos ‘normativos’. Houve uma preocupação moral sobre vários aspectos, fundamentada no direito de emigrar/imigrar e no dever de receber ou acolher pessoas estranhas, diante de seus diferentes interesses e de suas distintas necessidades”, explica Pich.

Em 1539, o dominicano espanhol Francisco de Vitoria (1483-1546), em sua primeira exposição Sobre os índios recentemente descobertos, se manifesta sobre o direito de imigração, na base de princípios gerais de sociedade e comunicação naturais dos seres humanos. Com novos fenômenos nos tempos pré-modernos e modernos, a Escola de Salamanca, nos séculos 16 e 17, refletiu sobre a colonização como exploração econômica e criação de núcleos populacionais estáveis no estrangeiro e o trabalho no âmbito das exigências da economia mercantilista global.

A abordagem filosófica começa a avaliar criticamente o vínculo entre processos humanos migratórios e direitos naturais e civis de indivíduos e coletividades. “Muito cedo se percebe que o princípio de comunicação e sociedade naturais tanto mais sustenta o direito de imigrar quanto mais este último também é formulado a partir do direito de pertencer a um lugar ou de ter um lugar para viver.”

Xenofobia e racismo afetam saúde mental

Se no passado as migrações tiveram sucesso, com a sinergia de diferentes povos, enriquecendo a cultura gaúcha e brasileira, os estrangeiros que chegam hoje ao Estado e ao País sofrem para se encaixar em nova realidade. No caso dos haitianos entrevistados pelo Núcleo de Pesquisas em Trauma e Estresse (Nepte), a xenofobia e o racismo vivenciados no Brasil pesam mais para aumentar os níveis de depressão, ansiedade e estresse pós-traumático (Tept) do que a experiência do terremoto no Haiti em 2010 e as condições socioeconômicas adversas. “A percepção de discriminação se torna evidente à medida que compreendem melhor a língua, seus significados e signos”, aponta o coordenador da pesquisa e do Núcleo, Christian Kristensen.

Os imigrantes demonstraram ainda dificuldades em lidar com a cultura brasileira e se sentem incomodados com a impossibilidade de voltar para o Haiti em caso de emergência. “As condições de acolhida têm um impacto importante na saúde mental”, aponta Alice Brunnet, que defendeu dissertação de mestrado sobre o tema no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, orientada por Kristensen. “A principal razão de vir morar no Brasil é arrumar um emprego para dar uma vida mais digna aos seus”, diz a psicóloga.

Imigrantes encontram dificuldades em lidar com a cultura brasileira

FOTO: ARQUIVO PUCRS/CAMILA CUNHA

Quem apresenta sofrimento pode fazer psicoterapia, de forma gratuita, no Nepte, ligado à Escola de Ciências da Saúde. O professor aponta que um dos desafios da PUCRS é ter um centro de referência para imigrantes. O serviço passou a ser oferecido dentro de um programa promovido pelo Centro de Pastoral e Solidariedade que envolve ainda apoio jurídico e aulas de português. A procura pelo atendimento psicológico é pequena, o que se assemelha a outros países.

189Pesquisa(Haitianos)Quando estudante de Psicologia, Laura Bolaséll procurava se apresentar aos pacientes em crioulo haitiano. “Apesar de falar apenas frases básicas, iniciar o atendimento dessa forma quebrava a tensão e criava um vínculo. Eles se sentiam em casa ou pelo menos olhados e cuidados.” Laura atuou como auxiliar de pesquisa e bolsista BPA/PUCRS e Fapergs de 2015 a 2018. Hoje cursa Mestrado em Psicologia na Universidade Kristensen destaca que a terapia cognitivo-comportamental focada no trauma tem algumas particularidades quando aplicada a esse público. “Procuramos construir com a pessoa uma linha de vida que contemple a narrativa dos eventos traumáticos. Ela é exposta a essa memória.”

COMPARAÇÃO BRASIL-FRANÇA

O estudo será ampliado, a partir de uma comparação entre Brasil e França, incluindo 70 pessoas em cada país. Se existe na Europa a proximidade com muitos povos a partir da colonização, o entrosamento entre culturas não é simples. “Em geral, os haitianos, por exemplo, ficam em bolsões nas periferias de Paris”, cita Kristensen.

Alice, que estudará o tema no doutorado em cotutela entre PUCRS e Universidade de Borgonha – Franco-Condado (França), com bolsa do CNPq, constata que, no Brasil, é tranquilo regularizar a estada para trabalhar. No entanto, fica complicado achar uma vaga e ainda por cima bem remunerada. “Na França, eles encontram obstáculos burocráticos, o que gera falta de abrigo, desemprego e problemas com a polícia. No entanto, depois de regularizados, o acesso ao emprego e a outros auxílios do estado são mais fáceis”, afirma.

Internacionalização

A PUCRS foi uma das 36 instituições contempladas com o Capes PrInt. O tema Mundo em movimento: indivíduos e sociedade é um dos incluídos da Universidade. Esse projeto tem parcerias estratégicas com a Alemanha (Universidade de Bonn), Itália (Universidade de Molise) e França (Universidade de Borgonha). Participam ainda as Universidades de Nantes (França), Ottawa (Canadá), Groningen (Holanda) e Calábria (Itália).

A ideia é ampliar a cooperação com diferentes instituições estrangeiras com reconhecido desempenho científico. Estão previstas formações em cotutela, experiências com professores visitantes, dupla diplomação, estudos pós-doutorais em perspectiva internacional e missões de trabalho, qualificando docentes e pesquisadores da PUCRS. O projeto conta também com os professores Maria Helena Bastos, Alberto Barausse, Luiz Carlos Susin, Agemir Bavaresco, Claudia Musa Fay e Erico Hammes. Estão previstas oito bolsas para mobilidade de doutorando nos quatro anos.