A morte se Sócrates, óleo sobre tela de Jacques-Louis David, 1787

Opinião

Ética e corrupção

Todos os dias nos deparamos com escandalosos casos de corrupção, ativa ou passiva, tanto no Brasil quanto no exterior, praticados especialmente nas relações promíscuas entre políticos e empresários. A corrupção é definida como o ato de solicitar ou receber alguma vantagem indevida, segundo a “lei de Gérson”: “levar vantagem em tudo”, não importando o meio para se alcançar o que se almeja. Tanto o corrupto como o corruptor praticam algo ilícito, passível de reprovação jurídica, em notório conflito com os princípios elencados por Ulpiano: “viver honestamente (honeste vivere), não lesar ninguém (neminem laedere), dar a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere)”. Sob o ponto de vista legal, há a previsão de uma série de sanções para os casos da conduta corrupta.

Mas não apenas o Direito recrimina a corrupção; também a reflexão ética reprova tal conduta. A Ética é a área da Filosofia que tem a ver com o estudo das normas, princípios que norteiam o agir humano. A palavra, de origem grega, significa etimologicamente hábito, costume e é objeto de reflexão filosófica há mais de vinte e cinco séculos. Já em Sócrates, Platão e Aristóteles, encontramos profundas reflexões sobre temas éticos.

“Sócrates afirma ser preferível sofrer uma injustiça a cometer algo injusto. Em sua visão, é necessário respeitar as leis da cidade e cumprir sempre os termos de um acordo justo. Por isso, considera inadmissível que seus amigos cometam algo ilícito para reparar a injustiça que Atenas praticara com ele, recusando qualquer vantagem indevida.”

Draiton de Souza, decano da Escola de humanidades

FOTO: CAMILA CUNHA

Exemplo disso é o diálogo de Platão intitulado “Críton”, em que a seguinte situação é relatada: Sócrates foi acusado, julgado e condenado à morte. Críton, um amigo de Sócrates, tenta persuadi-lo de fugir da prisão, dizendo, inclusive, que ele e seus amigos providenciariam meios para o suborno dos guardas. Apresenta vários argumentos que justificariam a fuga, mas Sócrates refuta o plano de Críton. Ainda que considere infundada sua condenação, Sócrates afirma ser preferível sofrer uma injustiça a cometer algo injusto. Em sua visão, é necessário respeitar as leis da cidade e cumprir sempre os termos de um acordo justo. Por isso, considera inadmissível que seus amigos cometam algo ilícito para reparar a injustiça que Atenas praticara com ele. Assim, Sócrates, na Antiguidade, dá uma resposta clara a tentativas de corrupção, ao recusar qualquer vantagem indevida.

Essa negação categórica da corrupção apresenta-se também na Ética do filósofo Immanuel Kant, muitos séculos depois. Para ele, o ser humano terá de agir corretamente “por dever”, não meramente “conforme o dever”. Isso quer dizer que a ação verdadeiramente moral é aquela que é motivada pelo dever e não a que tem a mera aparência de dever. Se um comerciante, num exemplo dado por Kant, devolve o troco certo ao cliente, não porque tem a convicção de que essa é a atitude correta, mas apenas por medo de perder a clientela, não está agindo moralmente, pois, para o filósofo, o ser humano deve agir corretamente sem fazer um cálculo das consequências.

Na ética kantiana, a pessoa nunca pode admitir a exceção, pensando, por exemplo, que, apesar de ser imoral mentir, vai se permitir tal atitude. Para Kant, devo sempre agir querendo que todos ajam como estou agindo! E seguramente ninguém gostaria que a mentira se tornasse uma prática universal. Ainda que, eventualmente, dizer a verdade possa-me trazer algum prejuízo, nunca devo permitir-me a exceção. Portanto, numa perspectiva kantiana, a corrupção é algo deplorável, porque a motivação do ser humano deve ser sempre o dever e não a indevida vantagem pessoal. Ao buscar o proveito pessoal, instrumentalizo os demais. Segundo Kant, no entanto, o ser humano deve ser sempre tratado como fim em si mesmo, e nunca como mero meio do meu proveito pessoal.

A corrupção não provoca apenas descrença nas instituições, quando praticada por agentes públicos. Não apenas traz grandes prejuízos à coletividade, ao desviar recursos vultosos que deveriam ser aplicados, por exemplo, na saúde e na educação. Além desses enormes malefícios, espero ter mostrado, com os exemplos de Sócrates e Kant, que a corrupção é o resultado da violação de elementos morais basilares que possibilitam a nossa convivência em sociedade.

“O filósofo Immanuel Kant diz que o ser humano terá de agir corretamente ‘por dever’, não meramente ‘conforme o dever’. Isso quer dizer que a ação verdadeiramente moral é aquela que é motivada pelo dever e não a que tem a mera aparência de dever.”