Em agosto, a pesquisadora completou 30 anos de atuação na PUCRS

PerfilFOTO: BRUNO TODESCHINI

Caminho pioneiro entre Psicologia e Direito

Lilian Stein é referência em pesquisas de memórias e falsas memórias para aplicação na área jurídica

A curiosidade e o fascínio pela Psicologia fizeram Lilian Stein seguir um caminho inédito em uma família até então de médicos. A escolha pela profissão foi marcada por muitos desafios e pioneirismo, com pesquisas translacionais sobre Psicologia do Testemunho que levam resultados científicos para atividades do judiciário . Lilian é referência na área de memória e falsas memórias, sendo convidada a ministrar treinamentos, integrar comitês em diferentes continentes e participar de eventos de importância nacional e internacional, como a  Assembleia Geral da ONU. Em agosto deste ano, completou 30 anos de atuação na PUCRS, sendo 21 deles na Pós-Graduação.

Desde a graduação na UFRGS, na década de 1980, a pesquisa tem um papel de destaque na sua trajetória. “Comecei a viver a pesquisa muito cedo e me apaixonei. No segundo ano do curso, me associava a professores como auxiliar na área. Ainda não existia Iniciação Científica e tudo era na base de esforço pessoal de alunos e docentes”, lembra.

Sua caminhada na PUCRS começou ao retornar do mestrado na Universidade de Toronto, levando para a sala de aula todo o conhecimento adquirido no exterior. Logo integrou, como pesquisadora associada, o Grupo de Pesquisa em Psicologia e Cognição, do qual hoje é coordenadora. “Eu sabia que era aquilo que eu queria fazer, então atuava como voluntária”, conta. Não demorou muito para ter um projeto aprovado pelo CNPq, tendo experiência em orientar alunos de Iniciação Científica desde o início dos anos 1990. Três anos após ingressar na Universidade como professora horista, Lilian ajudou a criar o Programa de Educação Tutorial  (PET), sendo a primeira tutora junto a outros colegas.

TRAJETÓRIA INTERNACIONAL

O trajeto no exterior de Lilian é composto por mestrado no Canadá, doutorado nos EUA e pós-doutorado na Espanha. Como pioneira da área no Brasil, sempre precisou se voltar a contatos no exterior. “Outros países avançaram muito, inclusive modificando leis e aplicações baseadas nessas pesquisas. Grã-Bretanha e países nórdicos são os grandes modelos. Aqui no Brasil estamos ainda muito distantes. Se temos que percorrer 10km, avançamos apenas um”, destaca. No grupo de pesquisa, estão criando um protocolo de treinamento para a polícia junto à Universidade de Portsmouth (Inglaterra) no doutorado de um aluno.

Em 2017, participou como ouvinte de reunião da Associação para a Prevenção da Tortura (APT), da ONU, que difunde práticas contra o uso da tortura e maus tratos. No mesmo ano, foi painelista da 72ª sessão da Assembleia Geral da ONU. Também integra uma comissão de 16 especialistas internacionais, da Psicologia e dos Direitos Humanos, para a criação de um protocolo universal de entrevista investigativa, baseado em evidências científicas para proibir práticas coercitivas.

Como painelista da Assembleia Geral da ONU, em 2017, em Nova York

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Psicologia e Direito

Foi durante o doutorado que Lilian começou a se relacionar com a pesquisa translacional sobre fenômenos de memória aplicada no campo jurídico da psicologia do testemunho. Nos dez anos seguintes, fomentou pesquisas básicas experimentais aplicadas às provas dependentes da memória, o que a tornou conhecida entre profissionais do campo jurídico. Nos últimos dez anos, 90% dos eventos dos quais participou são do Direito, e 10%, da Psicologia. “Usamos princípios e evidências científicas da pesquisa básica na área de memória aplicada ao campo de obtenção de informações de testemunhas, vítimas e suspeitos para combater práticas coercitivas como tortura, que não funcionam e infringem normas básicas de direitos humanos”, explica.

Contemplada em um edital do Ministério da Justiça, em quatro meses fez o primeiro diagnóstico nacional sobre práticas utilizadas no sistema de justiça de primeira instância estadual para coleta de provas dependentes da memória. Foram mais de 100 entrevistas com policiais militares e civis, juízes, promotores e defensores das cinco regiões brasileiras. O resultado pode ser visto no volume 59 da coleção Pensando Direito, de 2015, disponível no site do ministério.

Sua atuação tem como foco central a pesquisa básica em memória e falsas memórias aplicada ao campo jurídico, mas é permeada por muitas outras iniciativas. Antes de viajar para o doutorado, em 1998, por conta das pesquisas que desenvolvia com crianças com dificuldade de aprendizagem, criou o Teste de Desempenho Escolar (TDE), considerado um marco na avaliação do desempenho escolar do Ensino Fundamental. Depois de oito anos de trabalho, em 2019, publica o TDE 2, em parceria com outras duas colegas. O documento será apresentado à ONU em 2021. Ainda, participa do grupo Innocence Project Brasil, assessorando e elaborando parecer em casos com coleta de prova de testemunho, vítimas e reconhecimento.

Treinamentos

Foi em 2002 que Lilian Stein começou a promover capacitações na área de entrevista investigativa baseadas em princípios científicos da Psicologia da memória e do testemunho. A Academia de Polícia da Inglaterra, o Departamento de Justiça da Catalunha, o Conselho Federal de Psicologia de Madri e outras instituições de países como México, Angola e Tailândia já receberam a professora. Desde o início de 2019, esteve em oito estados brasileiros. “Meu objetivo é fomentar a justiça. Todo mundo vai ganhar. A sociedade ganha com uma polícia judiciária mais efetiva, já que em grande parte dos processos criminais as decisões são tomadas em provas dependentes da memória. E evitamos que pessoas sejam condenadas por crimes que não cometeram. ”, afirma.

Segundo a professora, nos EUA são mais de 400 casos de pessoas condenadas e exoneradas, presas por anos por crimes que não cometeram, e 70% foram por provas de falsas memórias. “Por que não oferecer ciência a quem faz um trabalho tão importante?”, questiona.

Formação global

Em 1986, quando poucas pessoas saiam do Brasil, Lilian foi com a família para Toronto, fazer mestrado no Departamento de Psicologia Aplicada de Ontário. Casada e com duas filhas pequenas na época, de 2 e 5 anos, trabalhava em uma escola de Porto Alegre e decidiu acompanhar o marido, então residente, que havia recebido uma bolsa, e também se especializar. “Não havia internet, então o processo era mais demorado. Tive que ir a São Paulo fazer o TOEFL. Enviei uma carta para a Universidade com uma bolsa que cobria as taxas acadêmicas”, recorda. A experiência, considera, foi excepcional e se deparou com estudos muito mais avançados do que os realizados no Brasil. “Foi uma reviravolta e retornei decidida a trabalhar com pesquisa.”

Para o doutorado, chegou a ser aceita pela Universidade de Nottingham, na Inglaterra, mas foi com bolsa CNPq para a Universidade do Arizona, nos EUA, em 1994. “Devo muito à PUCRS essa oportunidade. Entrei no programa 1000 para 2000 e sou grata à Universidade que me apoiou nesses quatro anos”, reconhece. A experiência foi ainda mais desafiadora que o mestrado, sendo introduzida à área com a qual trabalha hoje. Como área majoritária, estudou memórias e falsas memórias e, como minoritária, seguiu a área de metodologia da pesquisa, instrumentalização, análise estatística. “A reviravolta foi maior ainda. Lá comecei a ver o que era realmente fazer ciência de ponta. Participei de muitos eventos, e isso abriu minha visão sobre o que é fazer ciência e a potencialidade da Psicologia, a sua força em termos metodológicos e de seus resultados”, afirma. Assim como no mestrado, Lilian foi com o marido, que também viajou a estudos, e com as filhas. Quando retornou, tornou-se membro docente permanente da Pós-Graduação e constituiu sua primeira turma de orientandos, assumindo em seguida a coordenação do Grupo de Pesquisa em Psicologia e Cognição.

Dados os limites da sua área de pesquisa no Brasil, de tempos em tempos Lilian sente a necessidade de sair para se reciclar, buscando ser desafiada em cenário internacional. Assim, em 2011, seguiu para o pós-doutorado na Universidade de Barcelona, onde voltou a trabalhar com pesquisa básica. Uma vez na Europa, participou de eventos em diferentes países e promoveu capacitações, dando um treinamento na Academia de Polícia da Inglaterra e outro, a convite do Departamento de Justiça da Catalunha, a todos os psicólogos e assistentes sociais do estado que entrevistam crianças e adolescentes em juízo.