Aline Fay fez as descobertas durante as pesquisas realizadas para o seu doutorado

PesquisaFOTOS: BRUNO TODESCHINI

Bilinguismo e compreensão da língua materna

Alunos disléxicos bilíngues têm melhor desempenho em tarefas em português que disléxicos monolíngues

POR VANESSA MELLO

Aprender um segundo idioma gera mais reservas cognitivas e auxilia o cérebro no processamento da linguagem; isso, por sua vez, pode ajudar com o processamento da leitura, que é a maior dificuldade de pessoas com dislexia. A descoberta é resultado da pesquisa de doutorado de Aline Fay, professora do curso de Letras, da Escola de Humanidades, como parte do projeto Acerta (Avaliação de Crianças em Risco de Transtorno de Aprendizagem) do Instituto do Cérebro do RS (InsCer). Esse foi o primeiro estudo realizado com crianças bilíngues portadoras de dislexia, com aplicação de testes em inglês e em português como língua materna.

A escolha pelo tema surgiu ainda no mestrado, a partir de leituras de Sally Shaywitz, pesquisadora de referência na área, de que crianças com dislexia não deveriam estudar outro idioma, pois, dada a sua dificuldade com a língua materna, geraria um grande esforço no aprendizado de uma segunda língua. Aline questionou o achado de Shaywitz. “Por que não poderiam aprender outro idioma? Isso prejudicaria o desenvolvimento como um todo e até seu futuro profissional. O transtorno não pode ser excludente”, afirma Aline. Então decidiu investigar se, com as ferramentas certas, essas crianças conseguiriam dar conta da demanda.

O estudo foi desenvolvido de 2013 a 2016 e envolveu 12 crianças, de 12 a 17 anos, de escolas bilíngues e escolas regulares de Porto Alegre. Os participantes foram divididos em três grupos: um de disléxicos bilíngues (português e inglês), um de bilíngues com desenvolvimento típico (sem dificuldades para leitura) e um com disléxicos monolíngues. Com a hipótese de que crianças com dislexia poderiam ser bilíngues com nível avançado em inglês, foram realizadas testagens com dados comportamentais e de ressonância magnética funcional, ferramenta que mostra o funcionamento do cérebro em tempo real.

O que é bilíngue

Aline utilizou o conceito de bilinguismo com base no pesquisador François Grosjean e definiu que seus participantes deveriam ter iniciado o estudo de inglês com seis anos ou menos, tanto na escola quanto em cursos de idioma ou com professor particular; que possuíssem certificação internacional (a escola participante realiza anualmente a certificação de Cambridge) e que ainda estudassem inglês de três a quatro vezes na semana, dentro ou fora da escola. Esses foram os parâmetros estabelecidos para a pesquisa. Monolíngues seriam os participantes que não cumprem os requisitos, principalmente do início prematuro do estudo do idioma.

DADOS COMPORTAMENTAIS

A testagem comportamental consistia em aplicação de provas em inglês e em português para os grupos bilíngues e de provas apenas em português para o grupo monolíngue, realizadas pelo projeto Acerta no InsCer. Os resultados demonstraram que os disléxicos bilíngues tinham melhor desempenho nas provas em português que os disléxicos monolíngues. “Já era imaginado que os disléxicos teriam déficit na leitura em relação aos alunos de desenvolvimento típico. O que não imaginávamos é que no teste em português, aplicado nos três grupos, a discrepância entre os resultados dos disléxicos monolíngues e dos bilíngues seria tão grande. Assim, inferimos que aprender uma segunda língua não atrapalha, pelo contrário, ajuda, pois na língua materna esses alunos tiveram crescimento”, destaca Aline.

Além disso, os disléxicos bilíngues se   aproximaram mais da média: a diferença de desempenho entre alunos disléxicos bilíngues e alunos com desenvolvimento típico não foi tão grande quanto o esperado, demostrando que pessoas com esse transtorno conseguem, sim, estudar e aprender outro idioma, mesmo que a leitura seja um pouco mais lenta tanto em português como em inglês. “Ao se esforçarem para aprender outra língua e outra cultura, auxiliam o cérebro a fazer as conexões necessárias para dar conta da linguagem”, explica.

A pesquisa terminou em 2016, e Aline entregou os dados dos alunos para seus familiares. Os efeitos foram muito positivos. As escolas trabalhavam com alunos disléxicos de maneira diferente e criaram outras políticas para melhor ajudá-los. Alunos disléxicos recebem cerca de duas horas a mais para finalizar os exames de proficiência e podem solicitar, mediante laudo médico, um leitor de provas. “Os professores passaram a entender toda a demanda e o esforço que um aluno disléxico requer de seu cérebro na hora da leitura e da escrita”, aponta Aline.

Hipóteses comprovadas via ressonância

Exame de ressonância magnética funcional foi realizado no InsCer

A segunda etapa da pesquisa consistiu na realização de ressonância magnética funcional (RMF) com os três grupos de alunos, utilizando o protocolo do Acerta, projeto do professor Augusto Buchweitz, pesquisador do InsCer, que investiga as mudanças que ocorrem no cérebro das crianças em fase de alfabetização, divulga e conscientiza a respeito da dislexia.

Os dois grupos bilíngues fizeram teste em português e inglês para comparação das áreas cerebrais que entram em atividade durante a leitura. Já o grupo monolíngue fez apenas os testes em português. Nessa fase, houve a colaboração com o Laboratório Haskins da Universidade de Yale para utilização da testagem em inglês desenvolvida pela instituição norte-americana, que foram validadas na versão em português do InsCer.

Esse tipo de ressonância permite visualizar o funcionamento do cérebro em tempo real, mostrando as diferentes partes ativadas durante uma atividade. No exame, os participantes escutavam e liam palavras em inglês e português. Um cérebro de leitor típico faz a conexão em poucos segundos, mas um disléxico encontra dificuldades e necessita de mais tempo para encontrar o som de uma letra, sílaba ou palavra, especialmente se é de vocabulário ao qual não está acostumado.

O que é dislexia

187Pesquisa(Foto4Págs.16a19)A dislexia do desenvolvimento atinge cerca de 5% a 10% da população mundial. O transtorno de aprendizagem, de origem neurobiológica, caracteriza-se pela dificuldade inesperada da criança de aprender a conexão entre grafema e fonema, ou seja, entre as letras e os seus sons. Dentre as comorbidades, estão ansiedade e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. “É um transtorno inesperado, pois a criança tem desenvolvimento típico em diversos âmbitos, inteligência, motor, criativo, de compreensão de fala, porém a leitura e a escrita são severamente prejudicadas”, explica Aline.

 

TESTES COMPROVAM

As hipóteses dessa fase comprovaram resultados já existentes na literatura, que ao invés de ativarem, como os leitores típicos, redes posteriores do cérebro que se adaptam à aprendizagem da leitura – lembrando que ela não é algo natural para o ser humano, precisa ser aprendida –, há uma subativação dessas redes neurais da parte posterior do cérebro. Essa é a assinatura neural da dislexia, identificada em diversas línguas. O exame na RMF tinha duração de 45 minutos. Em quem tem dislexia, a desativação das áreas do cérebro é uma constante, porém nos disléxicos bilíngues a ativação do córtex pré-frontal, que tem relação com esforço e atenção, por exemplo, foi menor que nos alunos disléxicos monolíngues. Ou seja, os participantes que falavam apenas português tinham de se esforçar mais para ler e, para isso, delegavam mais recursos cerebrais. “Por meio dos testes comportamentais e de imagem, demonstramos que sim, um aluno com dislexia pode aprender uma segunda língua e isso pode auxiliar (e não atrapalhar) sua língua materna”, comemora Aline.

Pioneirismo do Projeto Acerta

Buchweitz publicou o primeiro artigo de neuroimagem com crianças brasileiras disléxicas

A pesquisa integra o projeto Acerta, do InsCer. Coordenado por Augusto Buchweitz, orientador de Aline Fay, o projeto é longitudinal e realizado desde 2013, com acompanhamento de crianças de algumas escolas em Porto Alegre, Natal (RN) e Florianópolis (SC) para avaliação de leitura. O grupo publicou o primeiro artigo de neuroimagem com crianças brasileiras com dislexia. O estudo mostra como o cérebro de crianças com dislexia funciona em repouso, quando essas áreas posteriores do órgão, que devem se adaptar para a leitura, estão desconectadas (não se comunicam) com o restante do cérebro em um leitor típico. “Agora queremos investigar o quanto esses graus de conexão se relacionam com a habilidade de leitura”, conta Buchweitz.

PARCERIA COM YALE

Pesquisadores e alunos do Acerta participam de uma espécie de consórcio de diversos países com o Laboratório Haskins, da Universidade de Yale (EUA), instituição que tem tradição de pesquisa em leitura e dislexia. A parceria tem um experimento sendo rodado em diversos idiomas (inglês, mandarim, espanhol, finlandês, francês, polonês) para investigar as bases universais da dislexia, apontando que é comum em crianças com o distúrbio em diferentes línguas. Cada instituição participante faz os mesmos exames com os participantes. “Escaneamos 70 crianças e seus dados estão em análise em Yale, junto a dados da Polônia”, diz Buchweitz. Ao mesmo tempo, parte da pesquisa de Aline, ainda não divulgada, também está em avaliação na instituição norte-americana.

No InsCer, crianças de 8 a 12 anos, de qualquer escola e com   dificuldade de leitura, fazem exames de neuroimagem para ajudar a identificar casos dislexia. É sem custo. Interessados podem fazer contato pelo e-mail [email protected].