Durante as próximas seis semanas, a PUCRS Cultura publicará poemas de autores finalistas e premiados em edições anteriores do Concurso Literário Renato Isquierdo. A seleção de poemas foi realizada pela organização do concurso, regida por estudantes e professores do curso de Escrita Criativa da PUCRS.
O Concurso Literário Renato Isquierdo é promovido pela Universidade desde 2019, quando ainda se chamava Concurso Rasuras. O evento tem como objetivo incentivar a produção e o consumo de conteúdo literário na comunidade. O e-book completo, com todos os textos das edições anteriores estão disponíveis para acesso na página do concurso.
P’alma
Felipe Durli
Corri para a janela,
O barulho balançava o prédio.
Eram os manifestantes na Borges,
Balançavam as bandeiras,
Mistério.
De cima, lá, longe da multidão
Eu senti a força da opressão,
De tudo que não temos,
De tudo que era nosso,
Trabalhamos em vão.
Peguei meus motivos,
Juntei tudo bem apertado
No punho e no coração,
Desci os andares da desigualdade,
Me misturei na multidão.
—
Ciclone
Fernando Baumann Cogan
Enclausurado num casulo
que não leva à evolução alguma
entre paredes espessas ocas
Sou poeira
Preciso de algo que me livre
Sonho respirar,
conseguir abrir a boca
Acordo como ar puro
Conduzo meu caminho
Do casulo se faz névoa
e o passo leva adiante
Horas viram instantes
Do oxigênio vive o ponteiro
Chego ao fim?
Abrigado e calmo, respiro
Mas o ar que era puro
ainda acusa a falta de futuro…
Uma hora eu saio
Passo pela linha que corta
a rua de cima
Vou por entre os prédios
que cortam o ar
E corto
Tudo
Sem deixar o mínimo espaço
pro rasgo que corta o curto espaço
entre a rua de cima
e a minha vida
E o vento que cortava as linhas
corta os cabos
e as calçadas
e a rua cai
como um pêndulo
que não cai
e volta pro mesmo lugar
Eu sopro uma música triste
que me liberta
de tantos dias em que meu assovio
não se ouvia nem na rua de cima…
Ar bruto
Veloz
avança com o som
Abruptos trovões
levantam minha voz
Com a água me combino
e já não corto mais
Eu molho
e quebro
e te chamo
Vem agora pra fora,
vem!
Agora não vem?
Agora vai ficar
e vai ouvir
e não vai dormir
EXPLODO
como ciclone
Destruo tudo, saio de cena
E não é mais comigo
Como um pêndulo renovado,
volto pro meu abrigo
por entre os prédios que cortam o ar
Só então percebo:
Sujeira da rua me cobre
Murcho sem demora
Cristais grosseiros surgem agora
pra desenhar o meu casulo
Uma outra hora eu saio…
—
Márcio Palheta de Araújo Góes
Já não sei mais o que sou,
Lembro de ser algo bom,
Olho em volta e vejo saudades.
Talvez eu seja apenas mais um fútil,
Um sentimento fútil,
Daqueles que aos poucos vai morrendo;
Para o bem do meu ser maior,
Hoje eu morri mais um pouco
E amanhã espero estar completamente morto.
Arrependimento
Camila Veiga da Silva
Deveria, quando tive a chance, ter tocado com as pontas dos dedos,
Delicadamente,
A libélula que invadiu o meu jardim.
Ter caminhado, sem rumo, sob a chuva de outono.
Sem razão, sem destino. Sem meio, sem fim.
Deveria ter gritado tempestades, silenciado vaidades, sussurrado cantigas.
Mordido a maçã, feito da serpente minha amiga.
Ter procurado, entre sombras, meu espaço.
Ter encontrado, na penumbra,
Em uma noite sem luz e sem lua,
Um motivo. Um sinal. Um aviso.
Deveria ter dito palavras que ficaram guardadas,
Empoeiradas, entre as páginas de um livro sem rimas.
Deveria ter bebido o veneno – amargo?
E selado minha sina. Sem saída.
Queria ter rasgado com um beijo,
Lábios que me assombrarão pelo resto da vida.
—
Breve futuro bruto
Brunella Martina Bruno Estefenon
1
Aqui dentro,
cataclismo
Não existe nada lá fora
Não existe nada depois de ti
2
um rio de lava
jorra
por entre as paredes
altíssimas
de vidro azul cintilante
já não sei se é igreja
ou shopping center
mas desconfio
que já não seja tão
diferente
3
O mundo acaba
em tom de piada
Quem não quer
morrer de rir
4
A casa suja
Eu sujo
Eu lavo a porta
Me lavo
lavo os pés
Eu sujo
eu suja
Lavo as mãos
mais uma vez
em água turva
Eu limpo o chão
Limpo o rosto
faço lixo
coço o olho
A casa suja
o corpo sujo
já não sei
como te limpar
de mim
5
Ano que vem vou ser inteira
Quem sabe
Você queria tantas coisas
Que pena
Queria te escrever
as palavras mais gentis
em uma carta
Mas nada
Ano que vem
com sorte
eu volto a ser
inteira
—
Oração da manhã
João Kowacs
Acordar de madrugada
e para o nada
dizer sim
estátua de ouro estátua de prata estátua de bronze
de obsidiana de rubi e de marfim
sim à caricatura grosseira
às manhãs de fazer feira
às memórias enterradas
feridas incuráveis
mil deboches sem sentido
ao que parece imóvel
e movimento
ao aperto no peito
aos alentos escuros
da terra
sim
ao que for vida
à toda verdade percebida
à perfeição escondida das
coisas
todas
embalagens plásticas
canções de carnaval
piadas sem graça
gestos obscenos
os altares humanos
sim
—
A memória e o mar
Pedro Pizzato
O que a memória e o mar tem em comum?
Nele existe repuxo, uma força
– Como o passado que nos atormenta –
exigindo de nós uma movimentação
As ondas são como os traumas:
Por vezes voltam, quebram na praia,
Quebram em nós, bagunçam a areia,
Como quem desajeita nossas vidas.
Existem também os humores da maré:
Quando está alta é como passado
inundando o presente. Quando está baixa,
abre espaço para vermos o agora.
O horizonte azul
é uma imensidão sem fim
ou início.
Nossas memórias são iguais
—
A fúria das águas
Neli Nei Trindade de Oliveira
Trovões, raios e chuvas massacram a terra ferida,
A fúria do temporal chega levando tudo por diante,
O rio sem freios rompe as margens e invade a metrópole.
É a avalanche das águas que se revolta num rompante!
Crateras abertas desabam casas e engolem carros,
O morro se desmancha sangrando em lágrima sentida.
Faca cravada no peito espalha dor, agonia e desespero
Ao ver a vingança sobre a família que tomba sem vida.
A pobre velha, desprotegida e sozinha no mundo,
Anda pela casa alagada, desorientada, quase ensandecida,
tentando salvar o pouco que lhe resta de sua memória.
Ela ainda pergunta: Pra onde eu vou?… Não é doida, apenas doída.
Onde estás Iemanjá, Sereia do mar, que não vês essa tragédia?
Andas distraída, enquanto o caos arromba e isola a cidade
Para a dança da chuva, fecha a porta de todos os mares
Libertas os predestinados para longe de tanta crueldade.
Iemanjá, Rainha do mar, castiga os piratas do povo simples
Condenas os infiéis que tiram a fé dos desprivilegiados da vida
Iemanjá, atendes meu pedido, imploro em nome dos filhos teus:
Perdoas os desgraçados, incautos, que ignoram a regra transgredida.
—
Ancoradouro
André de Carvalho
o navio apita
no instante que precede o naufrágio
último estertor de sua grandeza
sua portentosa carcaça
aporta inerte em cais de argamassa
vestida de abandono por preguiça
o caiçara cospe
caroço de fruta da estação
roubada de cargueiro sem dono
tocando a neblina que cerca o miradouro
com mãos calejadas de pertinência
o rebocador flutua
no largo que soluça ad infinitum
deformando areia por quem pisada
valises boiam quentes em aquática sorte
num sopro de singeleza esfacelada
um perfeito nó de marinheiro
é buraco de esperar cabotagem
o sol se apaga ligeiro
do esqueleto da embarcação
—
Solitude
Eleonora Coragem
Despida, eu canto
e ergo meus versos.
Tecendo, escrevo.
Melodias sem nexo.
Fecho o azul dos olhos
para mirar o infinito.
Descerro os lábios
e não se ouve o grito.
Labirintos da chuva
em cores que murcham.
O vinho bebido.
Meu mundo esquecido.
De dia me multiplico
em versões solitárias.
Nas noites te busco
em duras verdades.
—
Definição
Eleonora Coragem
Sábia e tola.
Na entrega sou rasa.
Entre mantras e dores.
Minha alegria me cala.
Penso muito, sinto pouco.
Não manifesto amores.
Tenho em mim os aromas,
As lembranças, os sabores.
Fêmea ou casta,
Não defino atores.
Sei que existo, sou plena.
E o instante atordoa.
A mim bastam as palavras,
Me traduzem a alma,
Hipnotizam a mente.
E o corpo, meu fogo.
Definições e estigmas,
Eu permito ao instante.
O que guardo em mim mesma,
São alguns dissabores.
—
Canto
Guilherme Pedro Nogaro
Na pequena cidade ou na capital
tem um pardal que canta.
Mal sabe o pássaro
que no agudo da sua melodia
faz chorar um homem
destroçado pela falta.
Se eu pudesse romper as distâncias
e unir
não só no peito mas no espaço
as cidades seriam uma.
O abraço do meu pai e o centro da capital
antigos, vazios,
resistentes.
A buzina e a voz com que minha mãe me chama
em puro sotaque
de interior.
Mas não basta.
Garimpo na capital
a nostalgia periférica
que não encontro
na cidade pequena
onde tudo é
central.
Escamas
Alice Adams Bohrer
É bom ser gente, pensar, andar em cima de dois pés e
problematizar a existência.
Mas gente também é bicho.
Bicho come?
Tanto quanto gente.
Bicho sente?
Sente, mas não pensa sobre o que sente.
Bicho
se arrasta no chão
varrendo os grãos de areia,
trocando de pele,
se metamorfoseando.
Grunhe,
ataca,
se protege.
Bicho tem medo.
Gente
controla os esfíncteres,
toma psicofármaco para dormir, segura o tesão, e cuida da pressão arterial. Gente pensa,
pensa,
pensa,
pensa,
pensa
e sabe o que vai fazer dali há 30 anos ou mais,
mas gente também é bicho,
e bicho ataca,
evacua,
trepa,
rosna,
roça.
Não há burocracia,
mérito,
láurea acadêmica
que nos livre da condição de ser bicho.
A selvageria que nos habita é a mesma que nos lança
aos impulsos da vida,
que nos desgraceiam e nos protegem.
Sentimos medo que nem bicho,
e raiva,
e dor
e amor,
e nojo,
e a intrínseca necessidade de continuar vivendo.
Domesticados em nossas conservas,
não sobra espaço,
ou tempo,
para nos rastejarmos na lama,
ou trocarmos nossas peles,
ou nos
metamorfosear.
Podados,
nos movemos pelo córtex,
(e cada vez mais, somente pelo mesmo)
que calcula como pagaremos os boletos,
mas não se entrega ao instinto reptiliano de
sobrevivência,
que se desmembra em funções metabólicas,
prazerosas ou dolorosas,
que são de bicho.
Mas gente também é bicho,
que esqueceu que um dia teve escamas.
—
Longa Metragem
Marina Soares Nogara
O ônibus em movimento
Lava o eco dos acenos
Deixa atrás a luz enviesada da rodoviária,
A ferrugem pálida do pórtico,
A geometria terna – teu lar
Com a alça da mochila presa ao joelho,
Sucumbes ao sono trepidante e morno
Não vês ao teu lado a passagem dos rastros
Que te ensinam o regresso
As nuvens aquareladas na vertigem do céu,
Os vitrais apagados da catedral,
A soja desgrenhada dos campos sequenciais
Encontram o contorno do teu nariz e fogem
Por detrás do teu banco
Já eu, que faço o sentido inverso,
Observo-te recostado à janela
Deixo os olhos soltos na esteira da paisagem
E assisto aos mil quadros que o caminho faz de ti
—
Clamor da janela
Tiago Rodrigo Padilha
Vede agora o espelho
As dunas de pouca esperança
Que clamam tanto por vida
Folhas verdes de uma criança
Recusa-te, reitera, reassegura
Revolta, ranço e fúria
Rasteja, resiste em lamúria
E para que? Inerte criatura.
Se os dias hão de ser sóis
Solte a nuvem macia que afaga
E afoga com a mão em silêncio
A ti que o oásis, quieto, enamora
Preciso esbarrar em gente de alma transbordante
Bibiana Raquel Vallejo Arroyo
Marcar encontros com poetas!
Abrir-me com as entendedoras
Das cores, dos sons, dos excessos da alma.
Aprofundar-me em pensamentos
Sem quaisquer julgamentos.
AH, esses normais, tão rasos e intocáveis!
Pros quais o amor é brega e a dor desdenhada.
Onde estão aqueles que se jogam ao chão?
Pelo sentir visceral, o pensar irracional.
Quero esses que se entregam ao desespero.
Que revelam em pinturas seus ardores
E em tonalidades rúbias seus amores
Quero almas coerentes com meu exagero
Que abracem as oscilações do meu ventre com zelo
Como filhos famintos e por isso mimados.
Reconheçam-se neles e serão meus amados.
AH, quero o Mundo, um mundo que sinta!
Cadê os Camões, de sangue quente, latente.
De feridas que doem, mas não se sentem?
Cadê as Fridas para quem amor é acidente,
Que ora tem nome, ora tira o andar da gente?
Cadê os Drummonds com os saudosos relatos
Nostálgicos daqueles seus dias de meninos?
E os Quintanas que falam de velhos amigos,
De esquecimentos, que nunca são esquecidos?
—
Cinemática
Marina Soares Nogara
Como é difícil escrever poemas
estáticos,
prefiro cinemáticos,
palavra escorregada em minha coluna vertebral.
Energia-poema de minha musculatura,
texto que errou o caminho da boca
e foi parar na velocidade dos dedos,
no contato modulado de meus pés com o chão.
Como é difícil escrever poemas
no papel,
marcar a palavra na folha,
deixar letra a letra a me espreitar.
Prefiro o movimento passando no corpo
para ser lido com o (seu) olhar.
Irromper a poesia na superfície da pele,
verso sussurrado na ondulação dos braços,
prendendo o grito na contração abdominal,
delineando, a cada gesto,
o corpo no som a palavrear.
Como é difícil expelir um poema,
prefiro caber a palavra no corpo,
Mas tentei caber o corpo na palavra,
como não cabia, tirei partes de mim,
e do poema acabado restou um eu
mutilado.
—
Trilhos
Raul Dullius
Velhos dentes
Trilhos quentes
Trem-fantasma
Maria fumaça
que só
Na mente vaga
Junto passa
De mãos dadas
Velho-mundo
Da janela
Feito mosca
Vê de tudo:
Prédios perdidos
Templos tombados
Pontes inacabadas.
—