Cultura

Resgate de memórias e resistência

Projeto digitaliza jornais da imprensa alternativa durante o período da ditadura militar

Um jornal que continha humor, contestação e uma linguagem irreverente e coloquial. Em 26 junho de 1969, em pleno período da ditadura militar no Brasil, chegava às bancas, em publicações semanais, O Pasquim, periódico da imprensa alternativa e/ ou nanica. Criado no Rio de Janeiro, o jornal veio contribuir para o surgimento de um espaço de oposição para humoristas e jornalistas, que após a edição do Ato Constitucional de número 5, o famoso AI-5, manifestaram a necessidade de se comunicar de forma mais urgente, pois o decreto presidencial do general Costa e Silva havia eliminado diversas garantias constitucionais.

O Pasquim foi um jornal representativo, que passou por períodos conturbados. Um deles foi a prisão, em 1970, de grande parte da equipe de redação pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna o (DOI- CODI), órgão de inteligência e repressão do governo brasileiro, subordinado ao Exército durante o regime militar que se iniciou em 1964.

As estudantes Gabriella (D) e Bárbara escaneiam O Pasquim para o Núcleo de Pesquisa em Ciência da Comunicação

Foto: Bruno Todeschini

Henfil, Ziraldo, Ivan Lessa, Jaguar e Millôr Fernandes entre outros nomes populares, faziam parte da equipe do jornal, que chegou a vender 80 mil exemplares por semana, mantendo a veia humorística e posicionando-se também contra a corrupção e o capitalismo neoliberal. O Núcleo de Pesquisa em Ciência da Comunicação (Nupecc), vinculado à Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos, fomenta a pesquisa por meio da digitalização e fichamento on-line de jornais alternativos, coloniais de expressão portuguesa, além de suplementos literários. Atualmente, o núcleo se dedica ao escaneamento das edições de O Pasquim, tendo concluído a digitalização de outros periódicos, como O Movimento, CooJornal, Revista TV Sul e jornais de colônias portuguesas.

A pesquisa é coordenada pelo professor Antonio Hohlfeldt, que desenvolve há mais de dez anos o projeto com noticiários nacionais e internacionais, que visam a preservação do acervo material da história da imprensa. Os dois últimos projetos de pesquisa intitulados O conceito de jornalismo/jornalista emergente no jornalismo colonial de expressão portuguesa e Os entraves das diferentes censuras e possibilidades de uma história conjunta do jornalismo na América Latina, são de pós-doutorado desenvolvidos por ele desde 2008.

O trabalho é feito pela estudante do curso de Jornalismo e bolsista de iniciação científica, Gabriella Rocha Bittencourt, que contou no último semestre com o auxílio de uma bolsista júnior, a aluna do Colégio Marista Rosário, Bárbara Ferreira Morais, de 16 anos, que realizou um estudo das propagandas e publicidades presentes nas primeiras 45 edições de O Pasquim. A digitalização e atribuição das edições na página do site do Nupecc, são feitas no Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS, o Delfos, que conta com uma infraestrutura pronta para manusear os acervos.

O jornalismo brasileiro antes e depois de O Pasquim

POR ANTONIO HOHLFELDT

Foto: Bruno Todeschini

Foto: Bruno Todeschini

O Pasquim não foi só uma publicação que revolucionou o jornalismo brasileiro, ele revolucionou a cultura brasileira, o modo de ser do brasileiro, a linguagem do brasileiro, o modo de ver do brasileiro, o modo de falar e o modo de escrever do brasileiro. Havia temas que nunca tinham sido abordados pela imprensa nacional.

Havia um tipo de editoração que, à exceção de Última Hora, nunca havia sido trabalhada com tanta liberdade e criatividade pela imprensa brasileira. Havia modos de pensar que ainda não se havia pensado. E havia palavras que se dizia, mas jamais se escreveria. Na verdade, havia outras que jamais havia se dito, porque elas não existiam, elas foram criadas pelo O Pasquim, mas que se incorporaram ao vocabulário brasileiro.

Quer um exemplo? Desbunde… A censura da ditadura estava preparada para coibir questões de política, de economia, de ideologia de esquerda, mas O Pasquim não era nada disso. Ou melhor, atacava e ultrapassava tudo isso graças a uma linguagem absolutamente nova e inesperada, graças às charges, graças aos personagens idealizados, ou às entrevistas extraordinárias.

A imprensa brasileira, de fato, nunca mais foi a mesma, depois de O Pasquim. Algumas coisas foram até incorporadas, a maioria delas, não. Mas O Pasquim cumpriu a sua tarefa. Mostrou criatividade, inventividade e ajudou a abrir a cabeça de muita gente.