Pelo Rio Grande

Resgate da história missioneira

Descoberta de livro e imagens ajuda a recontar o período das reduções jesuíticas

POR ANA PAULA ACAUAN

Obra do astrônomo foi publicada entre 1730 e 1740

Fotos: Édison Hüttner/Divulgação

Um tesouro ajuda a recontar o período das missões, nos séculos 17 e 18. Trata-se de um manuscrito organizado pelo primeiro astrônomo sul-americano, o padre argentino Buenaventura Suárez. Publicado entre 1730 e 1740, em espanhol e latim, traz as coordenadas geográficas (tábua de latitude e longitude) das 30 reduções da Província Jesuítica do Paraguai, determinando a distância de cada uma. Já conhecido, o estudo está citado em outras obras. Mas esse registro é inédito, pois não consta nem no Lunário de um século, de Suárez, publicado em 1738-1739.

Também um almanaque, o manuscrito reúne assuntos variados, como história dos reinos da China e do Japão, o trabalho de evangelização nesses locais, informações sobre Espanha e Portugal, além de curiosidades culturais. Inclui ainda cópia do livro Theologia tripartita universa complectens nunc Bibliothecam perfectam viri ecclesiastici, ordine sequenti, do famoso teólogo jesuíta Richardi Arsdekin, de 1696.

Uma obra como essa abre as portas da história”, destaca o professor da Escola de Humanidades Ir. Édison Hüttner, que coordena o Projeto de Arte-Sacra Jesuítico-Guarani. Ele foi procurado por Andréa Sinnemann, sobrinha de Liane Janke, de Panambi (cidade a 373 km de Porto Alegre), que possui o livro. Apesar de algumas páginas terem se perdido e de não haver título, deduz que se trata de um lunário pelo tipo de caligrafia e conteúdo. “Com várias temáticas, era destinado ao ensino da cultura geral dos jesuítas e índios”, afirma.

Como os nativos eram alfabetizados pelos padres e aprendiam técnicas de caligrafia e de confecção de livros de forma artesanal, devem ter ajudado a escrever e compor o material, aponta Hüttner. A data da obra foi estimada, levando em conta que faz a cronologia dos papas. O último mencionado foi Clemente XII, pontífice entre 1730 e 1740.

Em 2001, Hüttner esteve nos Arquivos dos Jesuítas, em Roma, e no Secreto do Vaticano, onde teve acesso a livros da época das reduções. No local, adquiriu La librería grande, com estudo das publicações feitas a partir de 1705, que serviu de base para a análise atual.

Saiba mais

O astrônomo

Com formação eclesiástica e científica em Córdoba (Argentina), Buenaventura Suárez atuou na Redução de São Cosme e Damião, onde hoje é o Paraguai. Utilizando aparatos trazidos da Europa, como dois telescópios da Inglaterra, iniciou na América os estudos de observação dos astros, possibilitando a previsão de eclipses e fases da lua. Mais adiante, construiu ele mesmo um instrumento.

185PeloRioGrande(Foto2)O lunário jesuíta

O livro tem capa de couro de 34,2 cm por 19,8 cm e lombada de 4,5 cm. Foi escrito com bico de pena. A tinta tem a mesma composição utilizada nas chamadas cartas ânuas (informes periódicos que os responsáveis pela Província Jesuítica do Paraguai enviavam aos seus superiores em Roma). O papel é de fábrica veneziana. Existem marcas d’água em 30 páginas, contendo círculos, meia-lua, âncora e estrela. Representam emblemas de Deus, luz e Jesus Cristo, além de apontarem o fabricante do papel. Também estão presentes em correspondências dos padres provinciais e em livros antigos publicados na Espanha no século 16.

Fonte: Ir. Édison Hüttner

Os pesquisadores: Klaus Hilbert (E), Édison e Éder Hüttner

Foto: Bruno Todeschini

Esculturas ganham novo significado

A cidade de Santa Maria, no Centro do Estado, guarda relíquias mais antigas que o Rio Grande do Sul, fundado em 1737. Um sino e três imagens de santos esquecidos pelo tempo ganham um novo significado. Uma delas é a escultura de São Nicolau, com 95 centímetros de altura e 38 de largura. Os materiais foram garimpados pelo professor Ir. Édison Hüttner.

A estátua, feita em madeira, deve ter pertencido à Redução de São Nicolau. Estava no ateliê do Colégio Marista Santa Maria. Sabendo das pesquisas de Hüttner, Ir. Roque Salet o procurou para que a identificasse. O pesquisador comprovou que integra o conjunto de obras das missões. Logo lhe chamou a atenção o prego da base, um cravo missioneiro, idêntico aos encontrados na Redução de São João Batista. As técnicas de encaixe dos braços e os sapatos também são comuns no período, assim como as características dos olhos. A arte em policromia se repete. Apesar de quase apagadas pelo tempo, se notam as cores na escultura e inclusive uma cobertura com pó de ouro. Segundo Hüttner, São Nicolau foi produzido pelo jesuíta José Brasanelli, escultor na Redução de São Borja de 1696 a 1706, com a ajuda dos indígenas. Os guaranis, que utilizavam a cerâmica primitiva, passaram a adotar a nova técnica a partir da chegada dos espanhóis.

Atacada por cupins, a peça está rachada. Faltam as duas mãos, encaixadas no restante da peça, e a Bíblia, presente em outras imagens do santo. Devem ter se perdido com o passar dos séculos.

Tomografia computadorizada feita no Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul mostrou que é maciça. “A tecnologia trouxe uma nova perspectiva para a arte missioneira antiga”, afirma o pesquisador Éder Hüttner, que introduziu essa ferramenta nos estudos. As imagens mostraram a espessura da escultura (20 cm) e a profundidade da rachadura (55 cm). Apareceram ainda pregos na cabeça, colocados provavelmente por vândalos.

Na Igreja Matriz de São Nicolau, existem três esculturas da redução homônima: Santo Antônio, Santo Izidro e Senhor dos Passos. Havia outra de São Nicolau, furtada na década de 1960. Ir. Édison Hüttner promoveu uma campanha para tentar localizá-la. Até o momento, não houve nenhuma informação. “Provavelmente a roubada foi parar em Santa Maria.”

“Foi encontrada a maior peça de São Nicolau da região dos Sete Povos. No mapa da arte sacra nacional, é como se achassem uma obra de Aleijadinho em Ouro Preto.”
Édison Hüttner, pesquisador

OBJETO RARO

O coordenador do Laboratório de Pesquisas Arqueológicas do curso de História, Klaus Hilbert, considera a estátua muito bem elaborada e impressionante. “Trata-se de um objeto raro, pois São Nicolau não é representado com frequência, especialmente naquele contexto”, afirma o professor, que supervisiona o estágio pós-doutoral de Édison Hüttner.

SINO DE 1684

O sino localizado na Catedral de Santa Maria data de 1684. Pertencia à redução de Santa Maria La Maior, na Argentina. O desenho de uma cruz é o mesmo identificado em dois sinos encontrados pelo irmão marista em Caçapava do Sul, de 1715 e 1732, que ainda badalam. Neste último, consta ainda o nome do indígena que participou da sua construção. Segundo Hüttner, os objetos provavelmente foram retirados de seus locais de origem porque  imaginavam que teriam ouro na sua composição. O Laboratório de Microscopia e Microanálises da PUCRS comprovou que são de bronze.

 

Santo Antônio e Senhor dos Passos

185PeloRioGrande(Foto6)No Museu Sacro da Catedral Metropolitana Imaculada Conceição de Santa Maria, Hüttner reconheceu ainda duas imagens que seguem o padrão de arte missioneira: uma de Santo Antônio, com 114 centímetros, e uma do Senhor dos Passos (sem a cruz), com 74 cm, ambas feitas em madeira. A ideia é promover uma exposição para apresentá-las à comunidade da cidade, destacando sua importância histórica. Cabe ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a decisão sobre o destino das três imagens.

 

Um pouco de história

As primeiras reduções jesuíticas onde hoje é o Rio Grande do Sul tiveram início em 3 de maio de 1626, com a fundação de São Nicolau de Piratini, o primeiro dos Sete Povos. Esse ciclo durou até 1638, com a invasão dos bandeirantes. Na segunda fase, houve a recriação de São Nicolau em 1687, no local que viria a ser o município homônimo, considerado a primeira querência do Rio Grande do Sul. Chegou a abrigar 8 mil pessoas. Esse ciclo durou até o cumprimento do Tratado de Madri, de 1750, que fez permuta da Colônia do Sacramento com os Sete Povos.