CulturaFOTO: JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO

Maria Bethânia recebe Mérito Cultural

Com o show Claros Breus, a cantora inaugura o novo Salão de Atos

FOTO: JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO

Com mais de 50 anos de carreira e 40 milhões de discos vendidos, a baiana Maria Bethânia é um patrimônio da cena cultural brasileira. Eleita em 2012 pela revista Rolling Stone Brasil como a quinta maior voz da música do País, agora, aos 73 anos, ela percorre o Brasil com seu novo show, Claros Breus, que reinaugura o Salão de Atos da PUCRS, em 5 de novembro. Na mesma ocasião, também será homenageada com o troféu Mérito Cultural, concedido a cada ano pela Universidade para quem tenha transformado a sua vida numa trajetória de defesa da cultura, enquanto instrumento de humanização e educação.

O diretor do Instituto de Cultura da PUCRS, Ricardo Barberena, destaca que, desde a estreia da cantora no espetáculo Opinião, Bethânia transformou-se numa grande embaixadora da língua portuguesa, aproximando a literatura dos palcos. Com um repertório sempre inovador, seja na carreira solo, seja com os Doces Bárbaros, nunca se rendeu às expectativas. “A cada novo espetáculo, a cada novo disco, buscava desafios para sua voz, sua performance, seu público. Ícone do samba e de músicos eruditos, ela soube sempre trafegar em espaço próprio, fazendo o trânsito entre diferentes manifestações musicais e culturais”, explica.

Ainda, segundo Barberena, a intérprete mistura música, teatro, literatura e pensamento. “É motivo de espetáculos, documentários, livros e, sobretudo, de orgulho para a cultura nacional”, enfatiza. Por sua contribuição à música brasileira, recebeu da Universidade Federal da Bahia o título de Doutora Honoris Causa.

Claros Breus é um ato de coragem

POR RICARDO BARBERENA, DIRETOR DO INSTITUTO DE CULTURA

Estive em São Paulo para assistir ao mais recente espetáculo de Maria Bethânia. Numa noite  fria e chuvosa, a abelha-rainha maravilhou o público. Claros Breus é um facho de luz numa época colérica e obscurantista. Logo nos primeiros acordes, me lembrei de um texto de Giorgio Agamben, O que É o Contemporâneo?, no qual o artista contemporâneo é definido como o que mantém fixo o olhar no seu tempo para aí perceber as trevas. Segundo o filósofo italiano, ser contemporâneo é um ato de coragem. Com sua voz de bronze, a cantora nos convida a uma caminhada pelas claridades que emergem dos nossos breus.

A magnífica direção de cenário de Bia Lessa apresenta inúmeros pontos luminosos que metaforizam velas de uma louvação ou vaga-lumes de uma imensidão. Se pensarmos nas palavras rebu e urbe, anagramas de breu, talvez tenhamos uma chave de leitura para a epifânica teatralidade de Claros Breus. Vivemos um tempo de reboliço quanto à partilha do sensível. O jogo de claridade e sombra nos remete às disputas urbanas em constante erupção. Ao trazer para o repertório do espetáculo o samba-enredo da Mangueira, História pra Ninar Gente Grande, Bethânia adentra no campo minado do revisionismo das narrativas oficiais. Sem deixar de lado clássicos como Sangrando (Gonzaguinha), O que É, o que É (Gonzaguinha), Tocando em Frente (Almir Sater e Renato Teixeira) e Olhos nos Olhos (Chico Buarque), a cantora não abre mão do destino de todo grande artista: o risco do reinventar-se numa contínua metamorfose estética.

Ao inserir Evidências (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), Bethânia passa muitos recados numa tacada só: o amor é a maior força da natureza humana. E a recepção artística não se define por nichos de alta e baixa cultura, pois não existem limites para o artista que não é refém de seu próprio personagem. Claros Breus também reserva um fascinante momento para inéditas de Adriana Calcanhotto e Chico César. Maria Bethânia é uma embaixadora da língua portuguesa. Como de costume, a literatura está presente num estado de sublimação: uma verdadeira sacralidade do invólucro sonoro da palavra. Seja ao ler um trecho do Poema Sujo, de Ferreira Gullar, seja ao cantar Imagens (música de Sueli Costa sobre poema de Cecília Meireles), Bethânia, como ninguém, é capaz de enunciar o máximo de som e sentido de cada fonema do português. Logo que li o nome Claros Breus pensei no oximoro clássico drummondiano: claro enigma.

Afinal, na sua inconclusiva materialidade, o breu também é um enigma do que virá, do que será descoberto no sombrio. Coincidência ou não, Bethânia lê versos de Mario de Andrade dedicado a Drummond (O Poeta Come Amendoim): “A gente inda não sabia se governar…/ Progredir, progredimos um tiquinho/ Que o progresso também é uma fatalidade…”. Por outro lado, como antídoto dessa trágica consciência do nosso atraso, ruge a arte de Bethânia. Como não acreditar na redenção da nossa brasilidade quando ouvimos a sua interpretação de Sonho Impossível (Chico Buarque e Ruy Guerra)? Como não esperar o triunfo dos bons ventos diante da força bethânica em Purificar o Subaé (Caetano Veloso)? Em última instância, é cabível desvalorizar uma cultura brasileira capaz de apresentar um show exuberante como Claros Breus? Assisti, depois, à entrevista da cantora com Pedro Bial. Foi uma espécie de epílogo para mim. Quem sabe um tipo de posfácio.

Uma fala de Bethânia, em particular, traduziu o que havia sentido naquela noite paulista: felicidade não há, não há. Há, sim, alegria e coragem. Eis o segredo do farol que ilumina o breu da nossa contemporaneidade: união de alegria e coragem. É isso que as pessoas encontrarão no dia 5 de novembro no Salão de Atos da PUCRS, quando Bethânia apresentará Claros Breus e receberá o Prêmio Mérito Cultural. Só resta dizer, mais uma vez, perante essa força estranha: bravo, Bethânia!