Opinião

A Igreja em favor da paz e não violência

Artigo do Professor Érico Hammes do curso de Teologia da Escola de Humanidades

Foto: Bruno Todeschini

Foto: Bruno Todeschini

“O motivo maior da promoção da paz, no entanto, é a superação da violência em todos os âmbitos da vida. De fato, o inimigo da paz não é a guerra, mas a violência, da qual a guerra é apenas uma das formas. É o caso típico da realidade brasileira. Mesmo sem guerra, a violência direta no Brasil mata cada ano mais do que a maioria dos países em guerra hoje”

 Por iniciativa da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, em concordância com o Papa Francisco, foi realizado em novembro de 2017, em Chicago, nos EUA, um encontro de 16 teólogos pesquisadores de alguns países para um ensaio de releitura da Teologia Católica à Luz da Paz e Não Violência. A tarefa consistiu numa tentativa de revisão dos principais conteúdos da fé católica para avaliar sua capacidade de contribuir para relações melhores entre as pessoas, povos, culturas e nações. Quais as razões para tal iniciativa?

A paz consiste essencialmente na superação do recurso à violência, na transformação criativa e não violenta dos conflitos, numa boa relação consigo, com os outros, com a natureza e com o totalmente outro, o Mistério Divino (cf. Carta da Terra). Plenitude de vida e relações saudáveis expressam a abrangência da paz e não violência. Assassinatos, assaltos, agressões físicas ou verbais, violações, discriminações, dentre muitas outras, são formas de violência pessoal e direta. Além dessas, existem ainda as estruturais e culturais e, claro, as guerras.

Duas razões da história recente obrigam a mudar o pensamento em relação à violência e à guerra. Desde a Segunda Guerra Mundial, depois da bomba nuclear, a guerra se tornou insustentável como forma de resolução dos conflitos entre os povos. Algumas situações conflitivas foram resolvidas de forma não violenta, provando a eficácia de soluções pacíficas. As mais importantes foram a independência da Índia, sob a liderança de Mahatma Gandhi, a mudança das relações entre brancos e negros nos EUA, sob a condução cristã de Martin Luther King (foto), e a queda do muro de Berlim. Por suas consequências diretas, pelo elevado custo social e ambiental e por seus efeitos muito passageiros, o “remédio” da guerra se tornou insustentável.

Foto: Divulgação

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O motivo maior da promoção da paz, no entanto, é a superação da violência em todos os âmbitos da vida. De fato, o inimigo da paz não é a guerra, mas a violência, da qual a guerra é apenas uma das formas. É o caso típico da realidade brasileira. Mesmo sem guerra, a violência direta no Brasil, com seus 61.600 assassinatos em 2016, mata cada ano mais do que a maioria dos países em guerra hoje. É mais do que a bomba atômica lançada sobre acidade de Nagasaki em 1945. Somando esse número às vítimas de trânsito, passamos dos 120 mil mortos violentos por ano. O Brasil é a prova trágica de que a violência, mesmo sem uma guerra, é a verdadeira contradição à paz. E essa violência é uma cultura que pode ser mudada em cultura de paz.

“O motivo maior da promoção da paz, no entanto, é a superação da violência em todos os âmbitos da vida. De fato, o inimigo da paz não é a guerra, mas a violência, da qual a guerra é apenas uma das formas. É o caso típico da realidade brasileira. Mesmo sem guerra, a violência direta no Brasil mata cada ano mais do que a maioria dos países em guerra hoje”

O cristianismo tem recursos para isso. É verdade que, historicamente, houve oscilação entre favorecer a violência ou a paz. De fato, pode-se afirmar com bastante segurança que os evangelhos e o Novo Testamento apresentam um Jesus fundamentalmente não violento. No início do cristianismo, a atitude predominante era em favor da paz e contra a violência, inclusive com o sacrifício da vida, já que os cristãos se negavam inclusive ao serviço militar. Invocava-se, com razão, o exemplo de Jesus de Nazaré.  Por outro lado, a participação posterior na guerra, nas Cruzadas e conquistas, assim como nos combates modernos, estava baseada numa extensão indevida do direito de defesa, com o argumento da “guerra justa”, ou de propagação da fé.

Ao longo do século 20, e em consonância com uma ampla consciência do conjunto da sociedade, a Igreja Católica e várias outras igrejas cristãs recuperaram sua tradição em favor da paz e da não violência. Em particular, na Igreja Católica neste momento cresce a disposição de reler sua tradição e seu conteúdo de fé sob a perspectiva da urgência de novas formas de relação humana. O nome Francisco, adotado pelo Papa, representa, entre outros, o  compromisso com a paz.

O imperativo da paz e não violência afasta de um Deus da guerra e revela o Mistério de Comunhão e misericórdia, a cuja imagem todo o ser humano foi criado. Aprender a perceber a importância do batismo e das promessas batismais como renúncia à violência e compromisso em favor da paz. Prestar atenção às referências litúrgicas, especialmente na eucaristia, às saudações de paz.

Os grupos cristãos, as escolas e universidades, as pastorais e movimentos, todas as instâncias de formação cristã têm a vocação de serem sinais da saudação cristã: “A paz esteja convosco!”