10 de Outubro de 2019
  • Zero Hora
  • Sua vida
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Uber oferece "vaca amarela" em corridas com taxa extra

A Uber anunciou para novembro a modalidade Comfort, que deve substituir a atual Select. A ideia é que, por um pequeno acréscimo no valor da viagem, o usuário possa ter comodidades como condutores mais experientes, bem avaliados, ar-condicionado previamente ajustado e - a mais polêmica - sinalizar ao motorista que prefere não conversar ao longo do trajeto.

Em redes sociais, a medida recebeu críticas por supostamente monetizar a desumanização das relações de trabalho. ZH consultou motoristas do aplicativo, em Porto Alegre, sobre a novidade, e ouviu prós e contras para quem está ao volante. Em linhas gerais, os profissionais se mostram compreensivos, e concordam em um ponto:

- É melhor que o usuário me avise antes no aplicativo que não quer conversa do que, depois da corrida, dar nota baixa por eu ter puxado assunto - opina um motorista de 33 anos, que trabalha com o aplicativo há três anos.

Ele desconfia que isso pode ter ocorrido com ele recentemente, quando fez uma pergunta sobre o caminho de preferência do passageiro e recebeu resposta atravessada - "Se tu tem GPS, usa". Logo que o cliente saiu do carro, o condutor percebeu que a nota havia baixado alguns décimos, sinal de que recebera poucas estrelas na avaliação:

- Pode não ter sido isso. Tem gente que avalia mal porque acha que pode ganhar desconto depois. Tem essa lenda. Ou porque não gostou do meu boné, da música no rádio. Às vezes, não dá para saber. Então, quanto mais transparência sobre o que o passageiro quer, melhor.

Uma unanimidade entre motoristas é que é compreensível uma pessoa não querer conversa, por inúmeras justificativas. Mas afirmam também que não é difícil detectar a propensão dos clientes a bater papo.

- Basta um pouco de bom senso para ver o humor da pessoa. Acho fácil perceber - opina outro condutor, de 31 anos, e há um ano e meio dirigindo pelo aplicativo.

Diferentemente de outros motoristas, que optaram pelo anonimato, Rodrigo Braz, 39 anos, faz questão de se identificar porque pretende transformar as conversas do dia a dia em postagens em um perfil no Instagram, com transmissões para trocar ideias com seguidores sobre o que ouve dos clientes - sem identificá-los, esclarece. Embora ainda não tenha inaugurado, o perfil @umuberdepoa já está reservado na rede social.

- Logo que soube, confesso que fiquei meio chateado. Gosto muito de conversar. Depois pensei: quer saber? Talvez seja melhor mesmo. Mas tenho um pouco de pena dessas pessoas. Além de não quererem interagir, não conseguem nem dizer isso pessoalmente numa boa - diz Rodrigo.

Ele aponta ainda a serventia dessa modalidade para evitar casos de assédio:

- Entendo uma passageira que use essa opção ao sair à noite para evitar um "Uber Don Juan", algo que é chato.

Especialista

Segundo Wagner de Lara Machado, professor da Psicologia da PUCRS e coordenador de grupo de pesquisa sobre bem­estar e saúde mental, o comportamento de pagar para evitar interações pessoais e tentar controlar o imprevisível, como a possibilidade de ter ou não uma conversa em uma corrida, tem algo a dizer sobre o momento da sociedade.

- Falar no tom de voz correto que não quer conversar exige nível de sociabilidade que pessoas às vezes não têm. Ou não estão dispostas a ter.

Nesse ponto, o botão para não conversar com o motorista se aproxima a outras tendências recentes, como evitar telefonemas, pedir comida sem ajuda de telefonista ou comparecer a um encontro quando há interesse mútuo previamente referendado por aplicativo. Embora o professor pondere:

- É tênue a linha entre a preocupação com serviço prestado adequadamente e essa rejeição a uma interação social. Em ônibus, não se deve falar com o motorista. Talvez a preocupação seja semelhante.


Mais uma derrota da sociedade
ticiano.osorio@zerohora.com.br

Somos tão antissociais que agora vamos começar a pagar para não conversar. Mediante o pagamento de um dinheirinho a mais, você poderá deixar claro que não está a fim de papo antes mesmo de o carro da Uber chegar.

Puxa vida: se não quer falar com o motorista, basta ficar quieto, afundar a cabeça no smartphone ou, o que seria o mais educado, dizer a ele "olha, não leve a mal, mas hoje não estou a fim de papo".

Já andei com motoristas calados, já andei com falastrões, já andei com integrantes do Clube do Ódio. Faz parte, ao meu ver, da vida em sociedade. Encaro como exercício de paciência, ou mesmo de empatia - é bom saber como os outros, que não estão na nossa bolha, pensam.

Também já tive a sorte de empreender conversas muito legais, produtivas, divertidas e até comoventes. Certa vez, peguei um motorista que conhecia e havia trabalhado com o saudoso Guto Greco, que tinha sido nosso professor no Laboratório de Criação, na Fabico (a Faculdade de Jornalismo da UFRGS), nosso diretor do grupo teatral que montamos em meio às aulas e nosso amigo com quem viajamos para festivais e passeios de feriado. Para chegar ao assunto, que trouxe emoção, só o que precisamos fazer foi conversar, interagir, compartilhar um pouquinho de vivência na corrida que nem chegou a 10 minutos. Enfim, cada vez pagamos mais para não lidar com a vida como ela é, cheia de imprevistos, chateação e frustrações, mas também de surpresas, reencontros e a satisfação gerada da cumplicidade de um sorriso, aquele momento gostoso em que, com o humor renovado, motorista e passageiro se despedem.