14 de Agosto de 2020
  • Zero Hora
  • Artigo
  • P. 25
  • 34.00 cm/col

A tutela da leitura

ELY JOSÉ DE MATTOS - Economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS | ely.mattos@pucrs.br

A polêmica da vez é sobre a tributação de livros. Uma das etapas da reforma tributária encaminhada pelo Ministério da Economia ao Congresso cria a CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços), que substitui tributos como PIS e Cofins. E a premissa básica dessa proposta é eliminar quaisquer isenções. Sendo assim, o livro, que hoje é beneficiado por lei com alíquota zero, passará a pagar 12% de imposto.

O argumento que sustenta esta opção é ter um imposto neutro, que não gere distorções nos comportamentos dos produtores e consumidores. Mercados sem distorção são o nirvana da agenda liberal. No entanto, não passam de uma fábula. Nenhuma sociedade, minimamente complexa, consegue construir mercados puros, sem qualquer distorção, onde só a opção individual dos agentes importe.

O caso do incentivo fiscal ao livro é uma dessas distorções. Temos consumidores com diferentes níveis de renda, mas nós, como sociedade, avaliamos que todos devem ter acesso a eles. A questão é como fazer isso acontecer. Sabemos que, sem alguma intervenção no sistema de incentivos, isso não ocorrerá.

Uma das alternativas é manter a alíquota zero. É uma distorção que, como argumentou Paulo Guedes, vai beneficiar mais os ricos, que consomem mais livros. Mas, de todo modo, os mais pobres ainda mantêm algum incentivo. Outra alternativa seria, por exemplo, algo parecido com o que o governo do RS está propondo: devolver parte do imposto pago para famílias de mais baixa renda. É uma ideia interessante, pois focaliza melhor o benefício. Continua sendo uma distorção, pois afeta os incentivos, mas é mais eficaz no seu objetivo.

Acontece que Guedes não propôs nada disso. Sua resposta a Marcelo Freixo, em audiência pública, foi um inconsequente "vamos dar o livro de graça para o mais pobre". Prover um bem gratuito é também um tipo de distorção dos mercados. Só que neste caso, com resultado muito pior, pois "doar" livros condiciona a escolha das pessoas da maneira mais nefasta possível. Essa passagem, entre várias outras já registradas em Brasília, desvela o que o cerne do governo federal pensa sobre cultura: algo secundário, que a elite do liberalismo estaria apta a tutelar. Pois, não está. Ninguém está. Leitura livre é uma razão, dentre tantas outras, para manejar eventuais distorções de mercado.