02 de Junho de 2020
  • Zero Hora
  • Notícias
  • P. 20
  • 340.00 cm/col

O home office veio para ficar

Apesar da urgência, as legislações trabalhista e tributária ainda não estão preparadas para que seja um processo simples e rápido

Mais do que tendência, o teletrabalho, como diz a lei, ou home office, se tornou obrigação em tempos de pandemia. Especialistas e estudos apontam: a atividade veio para ficar.

Professora da escola de negócios da PUCRS e sócia-diretora da CRTL4Time, empresa de software de gestão de pessoas, Loraine Bothomé Müller conta que a troca emergencial do trabalho presencial pelo a distância ocorreu de forma acelerada porque era o único recurso possível para o momento, mas mostrou possibilidades antes refutadas pela sociedade e já apresenta aprendizados.

- Em março, éramos motor de arranque tentando correr 100 metros e dar tudo o que tínhamos. Mas, no segundo estágio, que estamos vivenciando agora, a vida já começou a ensinar que quem vencerá a corrida não será a lebre, mas quem tiver a resistência do jabuti. É uma prova de resistência, não de velocidade - ensina.

Loraine considera que as pessoas, realmente, estão sentindo o que significa confinamento e tendo uma rotina relativa que mostra não ser possível trabalhar 14 horas por dia, atender a casa nas outras quatro e dormir nas horas restantes. É um momento de reavaliação pessoal e profissional.

Mesmo não sendo novo no direito do trabalho - está regulado na CLT desde novembro de 2017 (Reforma Trabalhista) -, o teletrabalho ainda enfrentava o receio da maioria das organizações. E por percorrerem um terreno que não dominam, muitas delas podem estar exigindo mais trabalho do que os colaboradores conseguem entregar. Este é o ponto negativo apontado por Loraine.

- Quanto mais incerto é o futuro, mais isso aciona a ansiedade das pessoas, e quanto mais incertas e mais ansiadas as pessoas ficam, mais no caos elas vibram, e menos a empresa tem condições de sair do modelo automático para ter uma produção melhorada. Prova de velocidade e prova de resistência são conjuntos de soft skills (habilidades que destacam profissionais) distintos - pondera.

Entre 2017 e 2018, trabalhar em casa ou até mesmo em outros espaços, como o coworking, cresceu 21,1%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já o estudo "Tendências de Marketing e Tecnologia 2020: Humanidade Redefinida e os Novos Negócios", desenvolvido por André Miceli, coordenador do MBA em Marketing e Inteligência de Negócios Digitais da Fundação Getulio Vargas, prevê crescimento de 30% do home office no Brasil após a pandemia. O e-commerce e o ensino a distância devem crescer 30% e 100%, respectivamente. A análise sugere ainda que líderes sejam encorajados a pensarem, revisarem seus processos internos, testarem e compreenderem que a tecnologia é, "cada vez mais, um ativo humano".

Empatia

Para a presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos seccional Rio Grande do Sul (ABRH-RS), Crismeri Delfino Correa, o home office como único recurso possível neste momento está oportunizando ao gestor conhecer o colaborador globalmente, desde como é a casa dele até curiosidades da vida particular, tudo por meio da tela do computador. Esta é uma forma, sustenta Crismeri, do líder ter mais empatia com o funcionário.

Tanto Loraine quanto Crismeri sugerem segmentos que podem adaptar-se com facilidade ao trabalho remoto. Entre os principais, estão jornalismo, publicidade, desenvolvimento de sistemas, docência, pesquisa, vendas, advocacia, contábeis e bancos. Com mais pessoas atuando de casa, completam, o sistema de logística e telentrega deve ser ampliado, mas com mais organização.

De acordo com a advogada Patrícia Alves, sócia da área trabalhista no escritório de advocacia Souto Correa Advogados, o teletrabalho deve estar expressamente previsto no contrato de trabalho. Para empregados que atuam presencialmente, a mudança deve ser acordada entre empresa e empregado e registrada em um termo aditivo.

Patrícia realça que o momento atual não apenas acelerou a adoção do trabalho remoto, como também trouxe a necessidade de adequação da legislação. Por exemplo, se o que interessa para a empresa é o talento do empregado, independentemente de onde ele reside, qualquer empresa, em tese, pode contratar empregados de qualquer lugar do mundo. Mais do que um working from home ("trabalhando de casa"), estamos passando para a fase de working from anywhere ("trabalhando de qualquer lugar"). No entanto, a advogada aponta que as legislações trabalhista e tributária ainda não estão preparadas para que esse processo seja simples e rápido. Escritórios de advocacia já estão trabalhando com essas demandas, principalmente com clientes da área de tecnologia.


Empresa pretende ampliar teletrabalho após pandemia
A consultoria e o desenvolvimento de softwares para clientes a distância, que muitas vezes podem estar em outro país, e também o trabalho remoto de alguns profissionais já eram algo familiar na ThoughtWorks, empresa de consultoria na área de TI com filial em Porto Alegre. Na política anterior à pandemia do coronavírus, as pessoas já podiam trabalhar até 40% do tempo mensal em casa, com horas distribuídas por semana. Isso foi ampliado e está em avaliação para permanecer depois da pandemia.

No Brasil, são 700 colaboradores. Destes, 220 atuam em Porto Alegre, onde 100% deles já eram liberados para o teletrabalho em parte do tempo. Segundo a diretora-presidente da ThoughtWorks Brasil, Marta Saft, uma análise dos escritórios da empresa no Brasil apontou que a taxa de ocupação diária ficava entre 60% e 70% antes da pandemia. A empresa vem estudando formas para entender quais os prós e contras do home office, medindo a produtividade dos times e conversando com pessoas para criar mecanismos que evitem impacto nas entregas. A ThoughtWorks já definiu também que permanecerá totalmente em homem office enquanto isso garantir a segurança das pessoas, independentemente de determinações locais, e já vislumbra ampliar o teletrabalho.

- Uma coisa é ter flexibilização pelos governos e outra coisa é perceber que conseguimos criar condições ainda mais seguras para as nossas pessoas. Claro, sujeito a algum pedido especial do cliente que exija presença física - afirma Marta.

Marta admite preferir atuar no escritório para conversar pessoalmente com colaboradores, mas tem conseguido trabalhar de casa e realizado tarefas, inclusive as domésticas compartilhadas com o marido.

- Este foi o primeiro desafio: tirar o tempo para acordar com calma, estar com meus filhos (de um e quatro anos) e bloquear horários de almoço e um dia ou outro para passar um tempo maior com eles. É importante criar espaços pessoais para nós e também comunicar o time sobre isso - ensina.

Segundo Marta, para a empresa tem sido um momento de reforçar parcerias e de ajudar a fortalecer quem passa pelo mesmo desafio. A empresa lançou um Guia Para Trabalho Remoto (thoughtworks.com/pt/remote- work-playbook) com o intuito de apoiar as organizações que se viram diante do desafio.

Marta admite que adotar o trabalho remoto de uma hora para a outra não permite que todos estejam preparados com a melhor estrutura, mas é otimista:

- Ganhamos a oportunidade de começar a agir e a pensar em como tornar essas situações mais viáveis e sustentáveis para nós, para a comunidade e para os negócios.


Cadeiras do escritório vão para a casa do colaborador
Como adaptar o trabalho ao home office é o que o advogado Paulo Petri (foto), sócio-diretor do escritório Petri e Machado da Rosa Advocacia, chama de "a pergunta de U$ 1 milhão".


Alimentação e internet são garantidas pela empresa
Para Frances Danckwardt (foto), no teletrabalho a rotina mudou 100% porque existe uma flexibilidade em relação à gestão. Com mais tempo em casa, ela conseguiu criar um projeto pessoal.

Dicas para o gestor

O gestor precisa ter muita clareza de como lidar com o home office. Segundo a presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos seccional Rio Grande do Sul (ABRH-RS), Crismeri Delfino Correa, é o gestor quem tem o poder de influenciar alguém. A liderança está entre uma pessoa e um contexto. Hoje, mudamos o contexto. Mas como lidamos com esta pessoa? Por isso, Crismeri dá dicas ao gestor em tempos de pandemia e home office

Responder imediatamente às mensagens enviadas pelos colaboradores

Comunicação é fundamental. Ver se a mensagem foi compreendida

Simplificar processos cada vez mais, sem intermediários

Ter reuniões sistemáticas. Não há controle sobre pessoas, mas por relatórios

Apesar das reuniões coletivas, não pode se descuidar de fazer contatos individuais com os colaboradores

Precisa conhecer o gerenciamento das ferramentas online disponíveis

Ter uma visão ampla da atividade. Fazer gestão por projetos e não por tarefas, liberando por entrega final, e não por etapas

Ter clareza das responsabilidades das metas

Compartilhar com todos, por meio de um documento online, tudo o que precisa ser feito e ir apontando o que foi finalizado

Manter contato com os colegas. Estimular os pares, fomentando um ambiente não competitivo

Trabalhar muito a comemoração - mesmo online, faça um happy hour virtual com os colegas

Deve se preocupar com a saúde mental do seu colaborador, que está cheio de variáveis de emoção neste período