06 de Dezembro de 2019
  • O Estado de S. Paulo
  • Negócios
  • P. 8
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Avaliado em US$ 1,3 bilhão, estúdio de games Wildlife é 10º ‘unicórnio’ do País

Fundada em 2011, startup paulistana está perto de alcançar 2 bilhões de downloads de seus jogos para celular; aporte de US$ 60 milhões é liderado pelo fundo Benchmark, que já investiu em Uber e Twitter, e será usado para expansão de equipe pelo mundo

O Brasil já pode se gabar de ter mais de dez startups avaliadas em pelo menos US$ 1 bilhão – os chamados unicórnios. Ontem, a empresa de games para smartphones Wildlife Studios se tornou a décima empresa a pertencer a este seleto clube, que já tem empresas como Nubank, iFood e QuintoAndar. Ao receber uma rodada de aporte de US$ 60 milhões liderada pelo fundo americano Benchmark Capital (investidor de Uber, Twitter e Snapchat), a companhia dos irmãos Arthur e Victor Lazarte, de 35 e 33 anos, respectivamente, será avaliada em US$ 1,3 bilhão no mercado.

A empresa tem trajetória discreta até aqui: foi criada em 2011 com o investimento inicial de US$ 100, na casa dos pais dos Lazarte na capital paulista. “Eu trabalhava no (banco de investimentos) JP Morgan em Londres e meu irmão na (consultoria)

Boston Consulting Group (BCG), mas não estávamos felizes. Voltamos para a casa dos pais porque não tínhamos dinheiro para pagar aluguel ou escritório na época”, conta Victor, formado em engenharia mecânica pela USP. Já Arthur é engenheiro aeroespacial. “Na época, os smartphones estavam começando a se popularizar e achamos que as pessoas iriam querer jogar nesses computadores de bolso”, diz Victor ao Estado.

Fundada sob o nome de Top Free Games (TFG), a Wildlife se dedica a criar games gratuitos para smartphones e recebe agora apenas sua primeira rodada de investimentos. Os números da empresa chamam a atenção: com cerca de 500 funcionários espalhados em seis escritórios e quatro países (EUA, Brasil, Irlanda e Argentina), a empresa está prestes a alcançar a marca de 2 bilhões de downloads, divididos entre seus mais de 60 títulos já lançados. Ao todo, mais de 1 bilhão de usuários já baixaram algum game da companhia.

Seus principais títulos são o jogo de tiro Sniper 3D, o esportivo Tennis Clash e o “livro de colorir digital” Colorfy. Os três são presença frequente no ranking de jogos mais baixados de iPhone e Android. Para faturar, a Wildlife exibe anúncios e também usa as chamadas “microtransações”. Trata-se da venda de itens dentro dos games que auxiliam o desempenho do jogador ou melhoram o visual de seus personagens. “É um modelo em que a maioria das pessoas não paga nada, mas há um grupo de 10% que sustentam a base”, explica Victor.

O modelo fez a empresa “gerar caixa” desde o primeiro dia, afirma o empreendedor. Além do Benchmark, participaram da rodada cinco investidores individuais. Entre eles, Hugo Barra, brasileiro que passou por Google e Xiaomi e hoje lidera parcerias na área de realidade virtual e aumentada no Facebook.

Com os recursos, a Wildlife deve aumentar seu time em 60% em 2020, chegando a 800 pessoas. A maior parte do time da empresa está em São Paulo, mas, no futuro, essa proporção deve se equilibrar pela metade. “O Brasil é um lugar com muito talento em tecnologia, mas pouca experiência, por isso buscamos pessoas fora”, diz Victor. Para o empreendedor, as habilidades pessoais são os grandes diferenciais de empresas do setor. “Todo mundo usa os mesmos softwares e computadores.”

Segundo André Pase, pesquisador em games da PUC-RS, a caça a profissionais é global. “O Brasil tem bons profissionais e cursos. Quem tem experiência, porém, recebe propostas em países de economia e política estáveis. A briga não é só por salários, mas por condição de vida.”

Outra parte do aporte será usada para fechar parcerias com estúdios menores, que poderão utilizar as ferramentas de distribuição da Wildlife. “Um dos maiores desafios de fazer um jogo hoje é distribuí-los. Nós temos um bom canal, que são os games anteriores, mas empresas pequenas não têm essa vantagem”, diz Victor. Não estão descartadas ainda aquisições de games de outras companhias.

Nova fase. Fãs da japonesa Nintendo, como Mario, os irmãos Lazarte se espelham na companhia de Mario para o futuro. “Ainda não há uma empresa icônica para os jogos de celular como foi a Nintendo para os consoles. Podemos ocupar esse espaço”, ambiciona Victor.

Mas a competição será dura: além dos milhares de jogos lançados todos os anos nas lojas de apps de Apple e Google, a Wildlife terá de enfrentar a concorrência das duas gigantes de tecnologia. Ambas passaram a oferecer bibliotecas de games para smartphones – o Apple Arcade e o Google Stadia – por assinaturas a partir de R$ 10.

Na visão de Pase, da PUC-RS, a Wildlife tem a seu favor um “catálogo de jogos que serve como um bom cartão de visitas, com qualidade visual e bom funcionamento das mecânicas de compra”. Para o especialista, porém, esse mercado traz um desafio: criar atrativos para manter o jogador engajado e, se possível, pagando pela experiência. “Como o jogo tem a presunção de ser gratuito e há forte competição, o usuário baixa uma vez e deleta assim que precisa liberar espaço na memória do celular”, afirma. “A competição entre o que você guarda no telefone e o que fica de fácil acesso na tela é muito forte.”

Para isso, a Wildlife investe não só em jogos criativos, mas

também em tecnologias como aprendizado de máquina e análise de dados, a fim de entender o comportamento de seus usuários. É um trabalho pouco glamouroso, silencioso, distante de holofotes. Ao Estado, Victor diz que “não é importante que a gente seja conhecido, mas sim que as pessoas gostem dos nossos jogos.”

Ele lamenta, porém, estar um pouco distante do sonho que o levou a criar o décimo unicórnio brasileiro. “Com o crescimento da empresa, tenho ficado com as decisões de negócios e não consigo colocar a mão na massa nos jogos, que é a parte mais legal do trabalho”, diz. “Mas faz parte da vida, não é?”.

‘Queremos ser a Nintendo do jogo de celular’

O mercado de games para celular é bastante disputado. Há empresas de sucesso que depois tropeçaram, como Zynga, Rovio e King. Como o sr. vê o setor?

As três empresas citadas hoje valem bilhões. Não continuaram crescendo, mas são relevantes e não podem ser consideradas fracassos. O problema é que nos jogos para celular é preciso ter timing. Não basta só fazer um bom jogo, ele tem de chegar às pessoas. A grande barreira de entrada do setor hoje é o investimento em marketing. É uma vantagem que temos, pois nossos games têm 1 bilhão de usuários. Mas há muito a ser feito. Para cada plataforma de videogames, existe uma empresa icônica. A Nintendo nos consoles, a Blizzard nos PCs. Nosso sonho é ser para o celular o que a Nintendo foi para o passado.

• Empresas como Apple e Google chegaram ao mercado com serviços de assinatura. Como a Wildlife vai competir? Historicamente, as pessoas consumiam jogos pagando por produtos ou serviços de assinatura. Ter jogos gratuitos com microtransações foi uma revolução: dá ao usuário a oportunidade de jogar por muito tempo até decidir que quer fazer algum investimento. É algo democrático. Vamos apostar nesse formato ainda mais.

• Há a discussão que empresas do País deveriam fazer jogos sobre a cultura local. O que acha? Não concordo. Para nós, é um orgulho fazer jogos aqui que alcançam o mundo inteiro. O legal da tecnologia é isso. Particularmente, sou apaixonado em descobrir quais são as coisas que unem as culturas, em como criar experiências universais. O fato de sermos do Brasil não deve servir só ao mercado brasileiro. É legal seguir os exemplos de outros lugares, com empresas que geram impacto no mundo todo.